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HABITAÇÃO
“Não longe do istmo de Suez, há mais de 100 mil anos, tempo e locais incertos, uma tribo de africanos, atentos e agachados em torno do fogo, acampava. Interrompendo subitamente discussões intermináveis, um punhado deles, excitado, levantou-se, decidido a abrir caminho em direcção ao Sol nascente: para ver, diziam uns, para brincar, não diziam outros, para assegurar melhor caça, diziam os mais sábios, para conhecer, talvez. Partimos sempre, numerosos, para um objectivo comum? A noiva de um, as mães de vários, os chefes do clã, sacerdotes severos, idosos fatigados… exigiram desajuizados que eles teriam de voltar para junto deles, se não na mesma noite, pelo menos o mais rápido possível, um para preparar o seu casamento, outros para auxiliar o grupo na sua vida quotidiana.” É assim que Michel Serres efabula um dos inícios da invasão da Terra pelos homens ainda sem história. No princípio alguns partiram enquanto outros se deixaram ficar, instalados junto às suas grutas. À medida que a invasão se alastrava pelo planeta, o habitat natural ia-se transformando em habitação, quer dizer, à medida que os vários grupos se iam sedentarizando, a casa – a morada murada – começou a tornar-se um dos verdadeiros traços distintivos deste novo acontecimento bípede. A habitação serve para os homens se protegerem dos outros animais e das intempéries, isto é, a habitação serve para os homens se protegerem da Natureza. Este movimento culmina com a criação da porta, e é este elemento que cria finalmente algo que ainda não existia – o interior. É a porta que cria o interior. Com ela o homem cinde a uniformidade contínua, escreveu Georg Simmel; com a porta o homem separa-se da Natureza. O mesmo é dizer que a habitação instaura uma separação no mundo natural. A partir de agora há um dentro e um fora, quando antes só havia fora, mesmo dentro de uma gruta. Desde aqueles incertos primórdios inventados por Serres, a questão da habitação tornou-se, nas nossas sociedades contemporâneas, um direito fundamental e inalienável. No artigo 65.º da Constituição Portuguesa pode ler-se, “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, pelo que, a especulação imobiliária e consequente gentrificação, de carácter selvagem, a que hoje assistimos nas cidades, pode ser entendida como algo que choca com a lei fundamental. E é também por isto, que o sem-abrigo é alguém que tem a sua condição de cidadão fundamentalmente maculada. O sem-abrigo não é sem tecto; o sem-abrigo é sem porta, é alguém que não tem acesso a um interior e por isso se torna numa figura inaceitável em qualquer sociedade. As cooperativas de habitação são, ainda hoje, uma forma de tentar obviar o furor do capital desenfreado e os seus preços exorbitantes e proibitivos. As cooperativas de habitação, ou seja, o sector privado não lucrativo, podem ser, finalmente, o garante efectivo daquele direito fundamental à habitação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
HISTÓRIA
"Neste como noutros momentos históricos, a Economia Social só encontrará novas formas de afirmação social e económica e só poderá suscitar encantamento se as suas organizações e práticas expressarem uma alternativa ao capitalismo liberal, um sistema produtor de novas desigualdades cuja teia se expandiu com a globalização e com a financeirização da economia que dela foi causa e efeito."(1) A economia social, a economia que não se rege pelo lucro, pode instaurar um desvio, uma alternativa no devir corrente, uma bifurcação na lógica regular. O filósofo alemão Peter Sloterdijk fala, numa entrevista recente, numa ciência que não existe – a labirintologia, a ciência dos labirintos. “Num labirinto, é preciso esperar não encontrar o caminho de saída à primeira tentativa. Tudo depende da boa memória que se tem das bifurcações.” Lembremo-nos da famosa frase de Santayana, “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” Quem não se lembrar das sucessivas bifurcações está condenado a repetir os becos sem saída, está condenado a errar pelo labirinto fora sem nunca dele conseguir sair. Quignard fala da história como a disciplina que organiza o esquecimento. A história é também a disciplina das ligações; a história tenta ligar causas a acontecimentos, ainda que à partida nos pareçam distantes ou desconexos, e assim nutrir de alguma lógica e sentido uma parte de tudo o que existiu e aconteceu. A história é, por assim dizer, uma espécie de ponte – tenta colmatar interrupções no tempo e já não no espaço. As coisas explicam-se também através do conhecimento das suas causas, tal como na medicina. A causa de um acontecimento será a consequência de um outro que lhe precedeu, porque não há acontecimentos desconexos, isolados, inférteis ou estéreis. Por exemplo, no princípio dos tempos humanos, a ligação entre cópula e nascimento não era clara – dois acontecimentos espaçados no tempo e sem relação aparente. Ao contrário do que acontecia com a morte – um hominídeo caía numa falésia e não mais se mexia, um animal era trespassado por uma seta e morria –, o início da vida era um mistério, pois a ligação entre causa e acontecimento não era explícita. Mas nesses primeiros tempos houve alguém que fez essa primeira relação excêntrica; nesses primeiros tempos houve um primeiro historiador, e é muito provável que esse primeiro historiador tenha sido uma mulher. A história pode ajudar a explicar os acontecimentos – as suas causas e consequências –, e, por isso mesmo, pode igualmente auxiliar nas bifurcações futuras, pois permite entrever o que ainda aí vem a partir do que já foi. 1. Álvaro Garrido e David Pereira, A Economia Social em Movimento. Lisboa, Edições Tinta-da-china, 2018, p.24. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
HOMEM
O homem instaurou uma descontinuidade no meio elementar natural. O homem – neste verbete, homem refere-se sempre à espécie e nunca ao sexo ou género –, desceu da árvore, libertou as mãos e com elas fabricou e utilizou ferramentas, e falou. O próprio fogo, que entretanto conseguiu domesticar, amansou as carnes cruas e demais alimentos, o que libertou a boca, que antes se mantinha a mastigar por horas a fio, e permitiu-lhe a afinação e transformação dos grunhidos em fala significativa. Em termos elementares, o homem não criou nada de raiz – isolou, juntou, dividiu e transformou algumas partículas e materiais, mas a origem desses elementos era, claro, absolutamente natural, isto é, provinha do que preexistia, do que ele encontrou no habitat terrestre. E é esta transformação das coisas pela acção do homem que criou, finalmente, as coisas artificiais. O artificial não é o que não é natural, são as coisas naturais transformadas pela acção do homem. Não há, pois, por assim dizer, um artificial puro, um artificial natural. Esta é, então, uma face daquela descontinuidade inaugurada pelo homem. Outra questão que verifica esta descontinuidade no meio natural é a poluição; ora, se tudo é natural ou provém da Natureza, como pode algo ser considerado poluição? A poluição é, na maioria das vezes, algo errado no sítio errado. O crude, por exemplo, existe nas entranhas revoltas da Terra, mas quando é trazido à superfície – sítio que lhe é totalmente alheio e anormal –, torna-se num elemento altamente poluidor. Esta transformação do meio Natural operada pelas acções do homem – que se empoleirou nas patas traseiras, como em tempos escreveu Lobo Antunes –, tornou-se, já em séculos passados, um problema cada vez maior, que, paradoxalmente, ameaça a sua própria sobrevivência. A produção desenfreada, consequência de uma lógica capitalista também ela cada vez mais desenfreada, quer dizer, selvagem, faz temer pela sobrevivência do próprio planeta, ou, pelo menos, pela sobrevivência dos recursos essenciais à sobrevivência da espécie homem e de um sem número de outros seres. A transformação planetária é já tão óbvia que certos cientistas advogam termos já entrado numa nova era geológica – a do famoso Antropoceno. Em sentido contrário, no sentido de desartificializar o planeta, encontramos o ecologismo. O ecologismo tenta refazer a continuidade interrompida pelo homem – apagar-lhe a pegada bípede monumental que sulca tudo o que era terra e verde, e que tapa e impermeabiliza o solo como se se quisesse esconder que debaixo do asfalto existe uma praia. Houve um primeiro homem que quis mais do que tinha, um outro, que quis mais do que precisava, e assim por diante. Estes impulsos conduziram-nos a incontáveis progressos e melhorias na vida quotidiana, mas, igualmente, à exploração do homem pelo homem, dos recursos naturais, de tudo o que existe, vivo ou não, rumo à extinção. A economia social tenta escapar a esta lógica – ali o homem é o centro, ao contrário da economia corrente, em que o centro é ocupado totalmente pelo capital, não permitindo ver o outro, tapando-o. Este vírus, que nos acompanha neste repetitivo ano de vinte vinte, mostra que aquela continuidade inicial ainda não se quebrou totalmente, isto é, que o homem ainda faz parte de um todo natural, mostra que ainda não se conseguiu impermeabilizar totalmente, que se ergueu e altivou, mas continua com os pés lamentavelmente colados à terra. E no final, no final de cada um, aí sim, voltamos ao fluxo natural das coisas, porque para a Natureza não há morte, há apenas uma redistribuição dos átomos. Na morte somos devolvidos ao natural e aquela descontinuidade, finalmente, dissolve-se. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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