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GENTE
Gente é povo. Mas gente ou povo não são termos globalmente inclusivos; quer dizer, não abarcam todos. O povo está sempre num nível mais abaixo do que aquele que profere a palavra povo. Quem diz povo, di-lo de cima e de fora, de fora do povo; expressões como cultura popular, como diz o povo, popularucho, ou para que o público perceba lá em casa, por exemplo, situam quem as profere, precisamente, fora da esfera do povo. Quem as profere não pertence ao povo – o povo será sempre essa entidade um pouco mais distante, um pouco menos sofisticada, um pouco mais negligenciável. “Qualquer interpretação do significado político do termo povo deve começar pelo fato peculiar de que, nas línguas modernas europeias, esse termo sempre indicar também os pobres, os menos favorecidos e os excluídos. O mesmo termo nomeia tanto o sujeito político constitutivo, como a classe que é excluída da política”, escreveu Agamben. O povo está na base da democracia – na base, precisamente, em baixo. Mas se a base se move, o topo abana, e quanto mais alto o topo, maior a probabilidade de se desmoronar. Esta é, talvez, a maior preocupação dos ocupantes do topo – manter a base imóvel, o povo no seu sítio, no mesmo sítio. A manutenção do poder parece depender da ausência de movimento do seu povo. E quanto maior a base, mais estável será o topo; em contrapartida, quanto maior a distância entre base e topo, mais periclitante este se torna. Por tudo isto, conclui-se que o mais conveniente será diminuir as distâncias entre base e topo, entre povo e poder, até ao ponto de os dois se permitirem confundir-se mutuamente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
GLOBALIZAÇÃO
“Vemos a água num copo como os astronautas viram a Terra da Lua: calma, brilhante, azul. Da Lua, eles não podiam ver nada da agitação exuberante da vida na Terra, as suas plantas e animais, desejos e desesperos. Apenas uma esfera azul com veios. Dentro da reflexão num copo de água, há uma análoga vida tumultuosa, composta de actividades de uma infinidade de moléculas – muito mais do que o conjunto de seres vivos na Terra”, escreveu o físico teórico Carlo Rovelli no seu último livro, The Order of Time. De facto, a imagem poderosíssima da Terra vista de fora deu azo a grandes esperanças humanistas – que importariam as guerras pessoais ou nacionais se estamos a falar daquele cubículo, embora esférico, que é a Terra vista de fora? Ao ver ao longe aquela bola inteira, pareciam absurdas e ridículas as disputas entre fortes e fracos, ricos e pobres – estamos todos no mesmo sítio e daqui não sairemos. Estamos todos no mesmo sítio, nascemos todos no mesmo sítio e cairemos todos no mesmo sítio. Vivemos encafuados naquela bola brilhante e húmida, calafetados entre uma atmosfera espessa e a gravidade que nos deseja sem fim. Cairemos todos no mesmo sítio – a morte, a ideia da morte, deveria ser, também ela, um factor de igualização tal como a imagem exterior da Terra. Esta imagem total iria igualar todos os homens e mulheres, crianças, animais e plantas. As próprias fronteiras, esse elemento irreal e teórico, iriam finalmente mostrar o seu absurdo. No entanto, a língua comum que nasceu e ligou todo o globo foi, enfim, o capital. A retórica da globalização escreve-se com o capital, o qual, em grande medida, se escreve com contentores. Os contentores marítimos são o fulcro da globalização e proporcionam esse absurdo quotidiano que é, por exemplo, encontrarmos umas bananas, vindas do lado de lá do mundo, mais baratas que as apanhadas aqui ao lado, ou adquirirmos uma peça de roupa mais barata que o preço de produção. A globalização é a assunção esférica do mundo, quer dizer, é perceber que todos os lugares estão ligados – ou que são passíveis de ligação – e tirar proveito disso. Neste processo omnívoro, muitos ficaram de fora, e as consequências de tal desenvolvimento desigual são visíveis tanto a nível político, como social ou cultural. Vemos a Terra como a água num copo, diz Rovelli. Com a globalização, alguns – poucos – vêem o copo meio cheio, enquanto outros – a larga maioria –, quase vazio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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