MÚTUA DOS PESCADORES, UMA COOPERATIVA SINGULAR
J. M. Jerónimo Teixeira Presidente do Conselho de Administração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. BREVE HISTÓRIA
1942-1974 Em 2012 para comemorar os 70 anos de vida da Mútua dos Pescadores, o historiador Professor Álvaro Garrido (AG) escreveu o livro “Mútua dos Pescadores Biografia de uma Seguradora da Economia Social” publicado pela editora “Âncora”, cuja leitura naturalmente recomendamos aos mais interessados, já que pela especialização do autor e pela escrita atraente, faz deste livro não um dossier para especialistas, mas uma obra que nos incita a desfiar as páginas e nos prende a atenção. Aqui deixamos apenas, em traços muito largos, uma referência que ajude a enquadrar a vida de uma organização cuja criação foi formalizada em 27/julho/1942, na sequência do edifício corporativo que a ditadura de Salazar foi adoptando para diversos sectores de actividade económica. As pescas tiveram desde 1936 até 1974 no Comandante Henrique Tenreiro, o “patrão das pescas”, que dirigiu e controlou, Grémios, Junta Central das Casas dos Pescadores e Mútuas de Seguros, sem esquecer a Brigada Naval da Legião Portuguesa, uma rede de organizações em que armadores e pescadores eram filiados, em muitos casos obrigatoriamente, segundo AG (pag. 55), “o Governo subordina a reorganização das pescarias à intenção política de submeter o trabalho aos interesses das pescas industriais.” Assim, foi natural que a Mútua dos Navios Bacalhoeiros tivesse sido a primeira a ser criada em 1936, a que se seguiram a Mútua dos Armadores da Pesca do Arrasto e em janeiro de 1942 a Mútua dos Armadores da Pesca da Sardinha e finalmente para os Armadores/Pescadores não organizados em qualquer Grémio foi criada a Mútua dos Pescadores. Estas organizações viveram até ao 25/abril/1974 sob o controlo da estrutura que o Estado Corporativo criou, tendo a Junta Central das Casas dos Pescadores assumido o papel de vértice desta estrutura, e, naturalmente foram vários os Almirantes e funcionários corporativos que se ocuparam da sua direcção, sem prejuízo de alguns dirigentes nomeados serem armadores e até mesmo pescadores. Não é por isso de estranhar, que à data da Revolução, a Mútua dos Pescadores tivesse registado na sua contabilidade vários empréstimos à Brigada Naval da Legião Portuguesa e à Cooperativa da Armada responsável pela construção de variadas vivendas no Restelo e atribuídas a oficiais superiores da Marinha. Ao longo destes anos a Mútua dos Pescadores aceitou ressegurar parte dos riscos das outras Mútuas, o que provocou algumas crises, que a chegaram a ameaçar, fez seguros de Acidentes Pessoais desde o início da sua actividade e de Acidentes de Trabalho a partir de 1954, sendo o ramo Marítimo sempre de pequena relevância quer pela não obrigatoriedade dos seguros quer pelos pequenos valores das embarcações. É uma organização pequena, centralizada em Lisboa, de baixa capacidade técnica dos seus elementos profissionais, que em 1974 vê cair o regime que a criou. 1974-1984 A Revolução abriu as portas da Mútua dos Pescadores à mudança, e se os governos não conseguiram, apesar dos estudos e propostas feitas, criar um quadro para as quatro Mútuas de Seguros na área das Pescas, na mais pequena, a acção sindical exercida levou à eleição de órgãos sociais representativos de Pescadores e Armadores da pequena pesca, da pesca artesanal, ou da pesca sem patrões, são algumas das designações que tentavam caracterizar a realidade económica e social subjacente. São os Dirigentes eleitos que, não possuindo as qualificações técnicas necessárias para sozinhos administrarem uma seguradora, escolhem dirigentes técnicos com uma carreira sólida nos seguros. O primeiro Presidente da Direção, Carlos Cordeiro e o seguinte Manuel Vilaça, juntamente com os dirigentes José António Amador e João Lopes da Silva, que fazem uma longa carreira na Direção, sendo cada um a seu tempo escolhido para Presidente, têm nos Directores de Serviços António Lopes Ribeiro, entre 1974 e 1977, e, Dr. Luís Simões de Abreu entre 1978 e 1984, quadros capazes de dirigir e formar tecnicamente as equipas de Trabalhadores que vão servir a Mútua na sua missão de seguradora da pesca. Aos Dirigentes eleitos coube sobretudo esclarecer e agregar, em toda a orla marítima do Continente e Regiões Autónomas, os Pescadores, Mestres e Armadores para confiarem na sua Mútua dos Pescadores, pois não esqueçamos que se na ditadura a filiação era obrigatória, no regime democrático a escolha da seguradora passou a ser livre. Aos Diretores de Serviço coube a missão de criar as bases técnicas e a gestão de uma estrutura seguradora e jamais a manutenção de “uma prática de concessão não universal de benefícios”, refere AG (pag. 103), como era timbre da actuação no anterior regime. São dez anos de “refundação democrática” AG (pag. 111), de uma estrutura que tendo nascido corporativa, passa a uma estrutura democrática, de livre inscrição e participação, sem fins lucrativos e consequentemente fazendo parte do “sector cooperativo e social” como a Constituição da República Portuguesa o define no seu Artigo 82º nº 4, e hoje também regulado pela Lei de Bases da Economia Social, Lei nº 30/2013 de 8 de maio. 1984-2004
Em março de 1984 dá-se um facto absolutamente inédito. Na Assembleia Geral para eleição dos Órgãos Sociais surgem duas listas, o que nada tinha de extraordinário, mas a candidatura do Presidente da Direcção, pela Lista proposta pelos Órgãos Sociais cessantes e pela Lista alternativa, essa já era uma situação imprevisível e absurda, de duplicidade da candidatura. Tendo o Presidente cessante feito a opção pela Lista alternativa, prossegue a Assembleia, mas ao se verificar na contagem dos votos que haveria uma maioria da Lista proposta pelos Órgãos Sociais, apoiantes da outra Lista impedem o normal decurso da mesma e o Presidente da MAG vê-se obrigado a suspender a Assembleia. A Lista alternativa, de imediato, faz um pedido de intervenção ao Governo do “Bloco Central”. O Primeiro-ministro e os Ministros das Finanças e do Mar, nos dias seguintes aprovam as Resoluções que suspendem os Órgãos Sociais e nomeiam uma Comissão Administrativa, não tendo ouvido os Órgãos Sociais nem o Instituto de Seguros de Portugal. Resoluções intrusivas numa organização associativa, consideradas ilegítimas e ilegais, sem qualquer intervenção dos tribunais, tomando partido por uma parte dos Associados, contra outra parte dos Associados. As eleições promovidas pela Comissão Administrativa, viriam a confirmar ser a Lista apoiada pelos Órgãos Sociais a que merecia um apoio maioritário e, portanto, a eleita. Este processo, contudo, arrastou-se durante meses e abriu uma grande ferida nesta organização. Como é natural, este processo dividiu os Associados da Mútua, mas também os Trabalhadores da mesma, que dificilmente poderiam ficar indiferentes ao que se foi passando. Mas a Mútua encontrou forças não só para se recompor, mas para se reinventar. Se havia temores de represálias a Trabalhadores apoiantes da Lista alternativa, tal não aconteceu e todos puderam contribuir para o novo ciclo que se abriu, num compromisso de lealdade aos Associados e às missões que à Mútua se colocavam. Foram abertas Dependências da Mútua em comunidades piscatórias que não tinham qualquer Serviço da Mútua próximo, sendo a primeira nas Caxinas, servindo Vila do Conde e Póvoa de Varzim, mas também em Ponta Delgada e Aveiro, e, não menos importante, os anteriores Postos Médicos de Nazaré, Peniche, Sesimbra, Olhão e Funchal, passaram a ser Dependências onde não só eram prestados os serviços aos Sinistrados, mas nas quais os Associados podiam encontrar as mais diversas respostas às suas necessidades de seguros. E este processo continuou ao longo dos anos chegando aos dias de hoje com 19 balcões que vão de Viana do Castelo à Horta, seguindo uma política de proximidade com os Tomadores de Seguros, Segurados, Pessoas Seguras, Sinistrados, Beneficiários, isto é, todos os Utentes dos serviços prestados pela Mútua. Os Serviços Externos, a permanente comunicação através do Boletim e depois da revista “Marés”, a formação de Trabalhadores, mas também de Associados, nomeadamente na perspectiva da segurança e prevenção, foram caminhos abertos que não mais se fecharam. Os Estatutos da Mútua foram sendo aperfeiçoados e a Governação foi densificada. A uma Direcção de três membros, um Conselho Fiscal de igual número e uma Mesa da Assembleia Geral também com três membros, sucede uma Direção com cinco membros. São criados os Conselhos Regionais e o Conselho Consultivo, órgãos consultivos, que têm que se pronunciar sobre os assuntos mais importantes da Governação. Os órgãos sociais chegam a um número máximo de 95 membros efectivos e suplentes. Nestes 20 anos de vida da Mútua dos Pescadores, foi possível criar uma estrutura dirigente e uma estrutura técnica com capacidade para ultrapassar barreiras e dificuldades normais e extraordinárias na vida de uma organização. Cresceu em serviços prestados, em diversidade, em sectores de actividade servidos, em especialização, em valor da sua situação líquida, em Dirigentes, Trabalhadores e Colaboradores. Três factos devem ainda ser destacados pelos seus impactos relevantes. Por mais do que uma vez, vieram a público posições de governantes de que os Acidentes de Trabalho deveriam passar para a esfera da Segurança Social. Se tal medida viesse a ser implementada teria um forte impacto nas seguradoras em geral e na Mútua tal seria demolidor. Em face de tal possibilidade optou-se por efectuar um conjunto significativo de investimentos em diversas PME’s de vários sectores de actividade, preparando com esta medida algum amortecimento dos efeitos negativos da redução drástica de actividade na área seguradora. Felizmente tal medida não avançou, mas dificuldades várias nas empresas participadas, acabaram por produzir perdas de valor nos activos da Mútua. Ainda com esta preocupação há que referir a ligação que se estabeleceu a uma pequena mediadora, Ponto Seguro, Lda, que não mais deixou de ser um elemento da maior importância na estratégia de crescimento da resposta o mais completa possível do serviço de seguros aos associados da Mútua. Já o projecto, da iniciativa de Mútuas e Cooperativas europeias, que em Portugal deu origem à criação da seguradora EURESAP, da qual a Mútua dos Pescadores foi fundadora e a maior accionista portuguesa, não se revelou um projecto viável numa perspectiva da Economia Social, tendo a Mútua acabado por sair de accionista e apenas se manteve a colaboração da Ponto Seguro que desde o início se revelou a grande angariadora do Ramo Automóvel. Em contrapartida, a impossibilidade da Mútua dos Armadores da Pesca da Sardinha poder continuar a sua actividade, por não possuir o capital necessário, levou a uma negociação da sua integração na Mútua dos Pescadores, o que veio a ser concretizado no ano de 1994. De destacar o indispensável e lúcido contributo do Presidente da Direção daquela Mútua, Senhor Joaquim José Mota. Esta solução permitiu que os Armadores e Pescadores pudessem continuar a usufruir de um seguro especializado e sem ânimo de lucro, e permitiu à Mútua dos Pescadores um aumento do volume de prémios e um reforço na sua liderança de seguros na Pesca. No ano de 2000 a Mútua dos Pescadores deu início à abertura da sua acção às actividades Náuticas, passando a segurar barcos, seus tripulantes e pessoas transportadas em barcos da Náutica de Recreio e barcos das actividades Marítimo-Turísticas, seguros que desde então não pararam de crescer. 2004 - aos dias de hoje Em 2004 a Mútua dos Pescadores, alterou os seus Estatutos, assumindo a forma jurídica de Cooperativa de Seguros, figura que a Lei de Seguros previa. Esta solução abriu o capital da Mútua à participação dos seus membros, mas até aos dias de hoje tal não teve um grande impacto. A Mútua tem contudo sido um actor interventivo no Sector Cooperativo e Social, como o define a Constituição da República Portuguesa, ou mais recentemente a Lei de Bases da Economia Social. O Conselho de Administração passou a integrar sete membros efectivos e três suplentes. O Conselho Consultivo (CC) foi substituído pelo Conselho Nacional, que é constituído pelos quatro membros da Mesa da Assembleia Geral (MAG) por inerência, sendo o Presidente da MAG o Presidente do CC, por onze membros dos Conselhos Regionais, por estes eleitos e ainda por um representante dos Trabalhadores, por estes eleito. A Comissão de Avaliação e Vencimentos, formada por três elementos, passou a “efetuar a avaliação sobre a adequação às funções, das pessoas candidatas a membros do Conselho de Administração, do Conselho Fiscal e do Revisor Oficial de Contas”. É de referir que pouco depois desta alteração estatutária, a Companhia de Seguros Rural (hoje com a designação de CA Seguros), que pertence ao Grupo Cooperativo Crédito Agrícola, propôs a passagem dos seus seguros na Pesca (quase duas centenas de barcos e respectivas tripulações) para a Mútua dos Pescadores. Igualmente a CAPA, Cooperativa dos Armadores da Pesca Artesanal (Peniche), regressou com os seguros dos seus membros (mais de cinquenta) à Mútua dos Pescadores. Foram sem dúvida reforços significativos na carteira da Pesca. Neste período, não foi possível chegar a acordo com a Mútua dos Armadores da Pesca do Arrasto, que acabou por se integrar na Companhia de Seguros Lusitânia, do Grupo Montepio. Com este processo, a Mútua dos Pescadores acaba por ser a única Mútua que resiste e que não deixou até hoje de continuar a crescer. Isolada ou nas contas consolidadas com a mediadora Ponto Seguro, a Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL, tem crescido e reforçado os seus capitais próprios, condição essencial para fazer face às crescentes e desproporcionadas exigências que a União Europeia vem fazendo às pequenas e médias seguradoras independentes dos grandes grupos transnacionais. 2. Traçando o Rumo A pandemia COVID-19, vai certamente reflectir-se negativamente no exercício da Mútua dos Pescadores e da Ponto Seguro. Acreditamos contudo que a estratégia traçada, é resiliente. Os Membros da Mútua e os seus Tomadores de Seguros, Segurados, Pessoas Seguras e Sinistrados, têm dado provas de que confiam no nosso trabalho, e, as medidas que tomámos em face da pandemia, são a prova de que podem continuar a confiar. Este é um elemento determinante. Os Trabalhadores do Grupo Mútua, são um esteio activo e indispensável na concretização da estratégia, das políticas e medidas que quotidianamente são implementadas e avaliadas, para que não faltem as correcções que as novas condições passaram a exigir. E na liderança desta estrutura o Comité de Gestão desempenha um papel fundamental, e, em particular a Directora Geral que tem uma posição de charneira na coordenação da estrutura técnica e na sua ligação aos órgãos sociais. Os Dirigentes eleitos, são o garante de que esta Cooperativa de Utentes de Seguros continuará no rumo certo para chegar a porto seguro, no respeito pelos princípios e valores cooperativos, e no cumprimento da missão que lhe está atribuída. É na interacção harmoniosa, respeitadora das diversidades, cuidadora dos interesses destes três corpos sociais, que se encontra a bússola que nos tem orientado e nos deve continuar a orientar. |