MIGUEL MACIAS SEQUEIRA
É estudante de doutoramento e investigador em energia e clima no CENSE, NOVA-FCT (Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade NOVA de Lisboa). Desde 2020, é voluntário na Parceria Local de Telheiras – uma rede de mais de 20 entidades e grupos informais ativos neste bairro de Lisboa – onde tem vindo a coordenar a implementação do projeto da Comunidade de Energia Renovável de Telheiras/Lumiar. É ativista ambiental e vice-presidente do GEOTA (Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente), sendo também um dos embaixadores do Pacto Europeu para o Clima em Portugal. |
Nos últimos anos, tenho coordenado os esforços para a criação da Comunidade de Energia Renovável de Telheiras/Lumiar[1]: uma iniciativa promovida pela Parceria Local de Telheiras e pela Junta de Freguesia do Lumiar que visa a participação ativa da sociedade civil na produção e partilha local de energia solar.
Vivo em Telheiras há 30 anos, praticamente toda a minha vida. Joguei futebol e brinquei nas ruas do bairro. Assisti aos esforços contínuos do associativismo local para a construção de uma identidade partilhada nesta zona relativamente recente de Lisboa. Em 2015, para a minha dissertação de mestrado em engenharia do ambiente, surgiu-me a ideia de analisar a eficiência energética no comércio local. Não havia caso de estudo melhor do que o meu próprio bairro e, reconhecendo a importância de falar com quem consegue “abrir portas”, contactei a Associação Viver Telheiras. Conheci assim o Luís Keel Pereira e o seu trabalho pioneiro na Parceria Local de Telheiras. Em 2020, apareceu a oportunidade de participar no grupo Telheiras Sustentável da Parceria Local. Em plena pandemia de Covid-19, reunimos online e, entre outras tarefas, desenhámos o processo “Ideias em Rede” que viria a nortear os nossos esforços. Este consistiu, simplesmente, numa recolha de ideias junto da população e posterior criação de grupos de trabalho. Volvidos quatro anos, vemos que a maioria destes grupos implementou ações que impactaram a nossa vivência coletiva em Telheiras. Assim, no final de 2021, aceitei o desafio de lançar um grupo de trabalho dedicado à energia, com o mote “vamos produzir a nossa própria energia renovável e partilhá-la entre vizinhos”. Felizmente, o tema recolheu interesse de várias pessoas, incluindo a Helena Martins, o Bartolomeu Bernardes e o António Boucinha, que eu não conhecia, mas que se tornaram elementos-chave deste projeto. Estava começada a jornada para a criação de uma comunidade de energia em Telheiras – penso que nenhum de nós tinha noção de que seria tão longa e absorvente. Um dos primeiros passos foi mesmo percebermos que isto, não só já era possível, como até tinha uma definição nas diretivas europeias e, posteriormente, no direito nacional (Decreto-Lei nº. 15/2022). Uma comunidade de energia renovável é, então, uma entidade jurídica baseada em participação aberta e voluntária, que deve ser autónoma e controlada pelos seus membros situados na proximidade dos projetos de energia renovável. O seu objetivo principal é proporcionar benefícios ambientais, económicos e sociais aos membros, que podem ser agregados familiares, pequenas e médias empresas e autoridades locais, em vez de lucros financeiros. Pode atuar em várias vertentes no setor da energia, incluindo a produção, partilha e autoconsumo de energia renovável. As primeiras reuniões do grupo de trabalho foram exploratórias, num misto de curiosidade e partilha de experiências. O principal resultado foi a definição de três linhas de ação: sensibilização da comunidade, aconselhamento gratuito e produção e partilha de energia renovável. Ainda hoje estou algo surpreendido por não termos desistido nesta fase inicial. Um momento marcante foi a organização de um evento sobre comunidades de energia, com a Junta de Freguesia do Lumiar, a Coopérnico e a Universidade NOVA de Lisboa. Este consórcio viria a desenvolver o projeto no âmbito de uma assistência técnica do Energy Poverty Advisory Hub. Como disse a Helena nesta altura: “agora é a sério”. Com estes parceiros, desbravámos o caminho para a implementação de uma comunidade de energia. Escolhemos edifícios e dimensionámos sistemas fotovoltaicos, selecionando um equipamento gerido pela Junta de Freguesia do Lumiar e já utilizado para várias atividades comunitárias. Definimos a entidade jurídica, neste caso uma associação sem fins lucrativos já existente cujos estatutos foram adaptados para acolher o projeto.
Desenhámos um modelo de financiamento e operação tão simples quanto possível, onde os membros fazem uma doação à associação para financiar a instalação do sistema fotovoltaico e pagam uma quota anual para cobrir custos operacionais. Escrevemos o regulamento interno, que define os direitos e deveres dos membros, os processos de adesão e de saída e o modo de deliberação interna em assembleia geral em que cada membro tem direito a um voto. Planeámos uma campanha de recrutamento de membros muito focada em eventos no bairro e em canais de comunicação do associativismo local. Percebemos o potencial do projeto para mitigar a pobreza energética e definimos uma estratégia específica para a inclusão de famílias vulneráveis. Esta famílias não pagam a sua entrada na comunidade de energia renovável, que é coberta pela Junta de Freguesia e pelos outros membros através de um mecanismo de solidariedade. A identificação e contacto são efetuados pelos assistentes sociais da Junta e de outros parceiros sociais no território, que beneficiam de uma relação de confiança já estabelecida. E, por fim, entrámos em licenciamento – um processo moroso que, entre articulação com a Direção-Geral de Energia e Geologia e com a Câmara Municipal de Lisboa, demorou mais de um ano. Em maio de 2024, conseguimos algo que já desejávamos há muito tempo: instalámos os nossos primeiros painéis solares para partilha de energia com o próprio edifício da Junta de Freguesia do Lumiar e com 16 famílias locais (três das quais com vulnerabilidades socioeconómicas). Por fim é real: somos donos da nossa própria energia. O conceito das comunidades de energia renovável parece perfeitamente adequado para as organizações da economia social. Os benefícios são múltiplos, destacando-se não só a poupança nas faturas de energia e a redução das emissões de gases de efeito estufa, mas também o reforço das relações sociais e a mitigação da pobreza energética. No entanto, uma série de barreiras tem impedido que esta oportunidade se materialize em Portugal. Para começar, as entidades da economia social já se deparam com várias dificuldades somente para manter as suas atividades normais. Entrar no mundo da energia será, para muitas, uma aventura irrealista, especialmente se faltar conhecimento técnico e se dependerem de voluntários. Há também falta de informação e apoio neste tema. Muitas vezes, haverá dificuldades para financiar estas atividades, especialmente em zonas de maior vulnerabilidade socioeconómica. Tratando-se de um conceito recente, existem aspetos pouco claros nos procedimentos de partilha de energia e de licenciamento, a que se juntam limitações na capacidade da rede elétrica. Assistimos também a uma captura do conceito por parte de agentes do mercado, que anunciam “comunidades” como mais um serviço ou bem transacionável. Em suma, atualmente, são muitas as barreiras que dificultam, mas não impedem, a transição para um sistema energético mais justo e democrático, que beneficiaria de uma participação ativa de entidades da economia social. Há uns tempos, encontrei esta visão formulada numa apresentação do ano 2020: “Um bairro […] onde a pobreza energética não é uma realidade, em que a energia é produzida e gerida localmente pelos cidadãos através de fontes renováveis […]. Um bairro mais dinâmico, resiliente, sustentável, saudável e feliz, com um sistema energético democrático que […] cria melhores relações sociais entre vizinhos.” É, sem dúvida, uma utopia, mas, com a CER Telheiras/Lumiar, estamos a dar alguns passos nesta direção. Para os interessados em construir uma comunidade de energia renovável, escrevemos um guia prático com dez passos essenciais para ajudar neste caminho[2]. [1] https://vivertelheiras.pt/certelheiras/ [2] https://vivertelheiras.pt/certelheiras/guia/ |
Text
Text |