RECENSÕES
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OS DOIS SÉRGIOS
João Salazar Leite
“Em todos nós há, sem dúvida alguma, a face luminosa e a noturna” (retirado de Natália Correia – Entre a Raiz e a Utopia, do artigo ‘As Contradições Sergianas’) Quem conheceu António Sérgio é unânime quanto à existência na sua pessoa de “dois Sérgios”. O racional e o emotivo. O aristocrata e o republicano. O pensador e o executante. O socialista e o suprapartidário. O entusiasta e o depressivo. Luz e sombra. Certeza e dúvida. Esperança e desilusão. Mas não seremos quase todos assim? Não é essa a normalidade humana?
O sobressalto constante; o viver entre a esperança em novos tempos e a constante opressão de um regime que se quis curto mas foi durando; a porta aberta à Vida na terra de adoção (nasceu no Ultramar) e a necessidade do exílio; a energia criativa e a recusa das autoridades para que tivesse emprego público; a vontade de ensinar e a impossibilidade de o fazer. Todos são fatores que estão sempre presentes em quem tenta justificar o percurso de Sérgio e responder a ‘quebras’ ou ‘mudanças’ de direção na sua produção e magistério. Um homem que manteve polémicas acesas com contemporâneos seus, mas que ao mesmo tempo conseguia entusiasmar a juventude com os seus ideais e visão; um homem que se refugiava na superioridade da doutrina longamente refletida, mas ao mesmo tempo era convidado para a mesa de honra nas reuniões daqueles que na prática estavam dispostos a executá-la; alguém que foi socialista de corpo e alma, mas que o partido político que se comprometeu a defender esse socialismo nunca quis aceitar plenamente entre os seus militantes. O intelectual das tertúlias, abertas as portas do seu domicílio, e o conspirador no meio das cebolas no sótão da cooperativa de consumo do Vale de Alcântara. Tudo isto esteve presente neste Português de maiúscula, que nos continua a acompanhar, irá fazer dentro de poucos meses cinco décadas desde o seu falecimento. Sérgio, pelo que dele vou aprendendo sempre que sou chamado a estudá-lo, foi sempre um notável processador da informação que lhe ia chegando de cá e do estrangeiro. Mais do que isso, digeria-a e conseguia depois reconstruí-la em prol do povo que sempre escolheu como destinatário final da mesma. A mudança de regime viria de uma população ensinada, de um povo a quem seria fornecido um caminho de esperança, uma sociedade renovada pela solidariedade e em liberdade. O horizonte desanuviado em que todos se empenhariam, os amanhãs cantantes. A exemplo dos Pioneiros de Rochdale, agora que me centrarei mais no cooperativismo, que colheram ideias desta ou daquela pré cooperativa e com elas construíram um todo coerente de regras de funcionamento, inscritas naquele texto que se conhece como First Law, também Sérgio colheu deste ou daquele seu contemporâneo as ideias que, uma vez decidida a publicação de uma folha educativa, o Boletim Cooperativista que começou a sair em 1951, consubstanciariam um Programa de ação cooperativo a desenvolver pelas cooperativas que de Norte a Sul de Portugal um dia quis ver fazer frente ao modelo de sociedade que predominava entre nós. Há sinais de que Sérgio já acarinhava os ideais cooperativos na década de 20 do século XX, mas só viria a escrever sobre o assunto quase 20 anos depois, e quase mais 20 anos demoraria a construir o plano do Boletim Cooperativista e a contribuir para a sua implantação entre os cooperativistas. Entre os primeiros sinais e a militância com a equipa do Boletim defendeu, primeiro, as ideias de Charles Gide e a sua República Cooperativa, a hegemonia do consumidor e a educação cooperativa como motor do desenvolvimento cooperativo. Chamar-lhe-ia a Nação Cooperativa e defendeu-a por muitos e bons anos. Depois importou as ideias de outro vulto da Escola de Nimes criada por Gide, Bernard Lavergne, e as suas Régies Cooperativas, hoje conhecidas por Cooperativas de Interesse Público. E, finalmente, o Sector cooperativo de Georges Fauquet, o equivalente a uma Nação amputada de parte da sua matriz social e económica, a componente das sociedades de capital. Um percurso só possível por quem teve a capacidade de reconhecer, não diria os seus erros, mas sim que as suas ideias iniciais se não adequariam já à evolução que a sociedade, sobretudo a europeia de meados do século XX, havia tido. Ou que os seus ideais iniciais não tiveram no terreno a receção que esperaria que tivessem face à justeza dos mesmos. Não seria, aliás, a única mudança de fundo no seu pensamento cooperativo. Sérgio não reconhecia de início as cooperativas agrícolas, não as considerava cooperativas verdadeiras. Cooperativas verdadeiras só as de consumo, e através delas também a cultura, a saúde, a igualdade de participação entre homens e mulheres. Terá sido Henrique de Barros, com quem manteve algumas polémicas, mas que era seu amigo, quem lhe fez ver que estava errado. E só um grande Homem é capaz de reconhecer a nobreza das ideias dos seus amigos. A maior homenagem que se terá feito a Sérgio, foi que a correção desses erros das primeiras teorizações seriam consagradas pelos seus discípulos aquando da elaboração da Constituição da República Portuguesa de Abril, em 1976. Henrique de Barros era precisamente o Presidente da Assembleia Constituinte, a mesma personalidade que viria, já Ministro de Estado do 1º Governo Constitucional, a criar o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, com um programa de ação inspirado no programa que Sérgio havia delineado duas décadas antes. Barros que nomearia para seu primeiro dirigente Ferreira da Costa, um dos jovens que Sérgio recebia em sua casa e com quem discutia o conteúdo do Boletim Cooperativista. Sérgio já não assistiu a esta fase da Nova República. Com a morte da esposa, o seu eterno apoio, e com a derrota de Humberto Delgado nas eleições de 1958, candidatura que mandatou, cairia na sua fase noturna. Já nem ao cooperativismo dedicava a sua atenção, fora-se a emoção. Mas ficara a semente. Daí este artigo, e outros serão por outros produzidos sobre a obra. É que ele disse a várias pessoas que de tudo o que fez em vida, terá sido a defesa dos ideais cooperativos a parte que gostaria de lhe ver sobreviver, e à qual o seu nome certamente ficaria ligado. Março de 2018 |
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NOTA DE LEITURA
Ensaios sobre Economia Solidária de Paul Singer Rui Namorado
1. Paul Singer é um economista brasileiro de prestígio internacional; professor universitário e político, figura de referência no campo da economia solidária. Nasceu na Áustria em 1932, oriundo de uma família judaica, forçada pela ocupação nazi a emigrar para o Brasil em 1940, onde se fixou em São Paulo. Em 1951, concluiu o curso de eletrotécnica na Escola Técnica Getúlio Vargas de São Paulo, tendo exercido a profissão entre 1952 e 1956. Filiou-se no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, tendo militado no movimento sindical. Como metalúrgico, foi um dos líderes da histórica greve dos 300 mil, que paralisou a indústria paulista por mais de um mês, em 1953. Em 1954,tornou-se cidadão brasileiro. Em 1959, concluiu o curso de Economia da Universidade de São Paulo (USP). No fim dos anos 50, militou no Partido Socialista Brasileiro (PSB). Foi um dos fundadores da Organização Revolucionária Marxista, Política Operária (Polop),radicada na ala esquerda desse partido. Em 1960, iniciou funções docentes na Universidade de São Paulo (USP), onde se doutorou em Sociologia em 1966. Estudou Demografia, em Princeton (USA), voltando à USP como Professor Titular, nas Faculdades de Economia, Administração e Contabilidade. Em 1968, apresentou sua tese de livre-docência, Dinâmica populacional e Desenvolvimento. Privado dos seus direitos políticos pela ditadura militar imposta pelo golpe de Estado de 1964, foi aposentado compulsivamente, em 1969. Integrou o grupo de professores e investigadores expulsos da USP que fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), importante instituição na área das ciências sociais que foi uma instância de relevo na resistência à ditadura; e onde trabalhou até 1988. Voltou a ensinar em 1979 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).Em 1989, por convite da Prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, foi Secretário Municipal de Planejamento de São Paulo, até 1993. Especialista e grande impulsionador da economia solidária no Brasil , participou na criação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP em 1998, tendo sido o seu coordenador académico . Em 2003, foi nomeado pelo Governo Federal do Presidente Lula da Silva como Secretário Nacional de Economia Solidária (SENAES), no Ministério do Trabalho e Emprego. Foi reconduzido no mesmo cargo no mandato seguinte, bem como nos mandatos da Presidente Dilma Rousseff. Em 11 de maio de 2016, depois de 13 anos à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária, foi afastado em simultâneo com a Presidente Dilma, pelo golpe de Estado que levou ao poder o anterior Vice-presidente Temer e abriu caminho a uma profunda reversão política e social. Paul Singer é autor de um vasto conjunto de livros, tendo também colaborado em várias revistas culturais, políticas e científicas. As suas inúmeras entrevistas são preciosas ilustrações do seu pensamento e fontes de um manancial de informações relevantess. 2. O que é a economia solidária na perspetiva de Paul Singer? Sem menosprezar as suas virtualidades como resposta imediata à desigualdade social e ao sofrimento dos pobres e dos explorados, o autor valoriza nela o seu potencial de transformação social. De uma transformação social que aponta para um pós-capitalismo que consubstancie os seus valores emancipatórios, libertadores, democráticos e solidários. A realidade brasileira incrusta-se na sua perspetiva, mas o que ocorre noutros lugares não é esquecido. Para Paul Singer, a economia solidária é um espaço que incorpora as tradições democráticas e emancipatórios do cooperativismo, do mutualismo, do solidarismo democrático e do associativismo popular. Os protagonistas dos movimentos sociais que a integram são sempre submetidos a um olhar crítico, mas fraterno. A sua radicalidade anticapitalista está impregnada por uma valorização inequívoca e incondicional da democracia, como horizonte irrenunciável de qualquer sociedade humana e como matriz fundadora de qualquer modelo pós-capitalista digno de esperança. 3. Neste livro conjuga-se uma abordagem teórica e doutrinária da economia solidária, que valoriza em pleno a sua profundidade histórica, com a sua ancoragem na realidade brasileira. Desdobra-se em duas partes, cada uma das quais com oito textos. A primeira reflete o modo como o autor concebe teórica e doutrinariamente a economia solidária, valorizando-a como combate à exclusão dos explorados e como possível oportunidade emancipatória, rumo a um futuro que consubstancie um humanismo pleno. A segunda conduz-nos, através de experiências da economia solidária no Brasil, em interação com o protagonismo político de Paul Singer, como membro do governo federal, tendo como pano de fundo a sua proximidade com as organizações envolvidas. É claro que na primeira parte não deixa de estar presente a realidade brasileira, como atmosfera relevante, enquanto na segunda são claras múltiplas repercussões teóricas e doutrinárias. Há uma relativa osmose entre os dois tipos de abordagem, a qual se projeta num discurso coloquial que nunca dispensa o rigor. Um discurso sempre enraizado na realidade, mas ao qual nunca falta uma ambição futurante. Este livro mostra como trabalhadores, excluídos e pobres podem construir uma resistência prática às sequelas de uma sociedade injusta. A partir da realidade brasileira manifesta-se uma problemática universal, através de um diálogo vivo com experiências congéneres espalhadas pelo mundo. É certo que, desde meados de 2016, a economia solidária no Brasil está cercada. O golpe de estado institucional então ocorrido não derrubou apenas um governo legítimo. Abriu a porta a uma regressão social, fruto de um paroxismo neoliberal que cada vez mais se mostra como o verdadeiro objetivo estratégico da rotura constitucional. Mas a economia solidária no Brasil está socialmente enraizada. Pode resistir a esta adversidade. Pode fazer parte de um dispositivo de esperança que seja horizonte e caminho. 4. Para concluir, sublinho as grandes linhas de força que estruturam este livro. É nítido o seu enraizamento no marxismo, em simbiose com uma atenção permanente à história do movimento operário. Um enraizamento alheio a qualquer dogmatismo e distante de qualquer seguidismo acrítico. Paralelamente, é nítido um compromisso com a democracia , sem reservas nem subterfúgios. O papel da Igreja Católica e de instituições dela dependentes é valorizado, através de uma ampla referência a múltiplos casos que o ilustram. Do mesmo modo, é salientado o contributo do PT para a expansão e o enraizamento da economia solidária. Não é esquecida a simbiose e a sinergia, abundantemente documentadas, entre a economia solidária e os movimentos sociais. Está assim sempre presente ao longo do livro a sua inserção na tradição cooperativa, uma sistemática valorização da lógica autogestionária e do ímpeto emancipatório. Pode pois dizer-se, em síntese, que estamos perante uma virtuosa sinergia entre saber académico, experiência de exercício do poder político e fraterna proximidade quanto aos movimentos sociais. Abril 2018 POST-SCRIPTUM Já depois de ter enviado o texto que acabam de ler para a redação, fui surpreendido pela notícia triste de que Paul Singer nos havia deixado. É sempre muito pesado o começo da saudade de todos aqueles que merecem a nossa homenagem. Mas a nossa mágoa é ainda maior porque pudemos fruir o seu convívio quando por diversas vezes veio a Portugal e a Coimbra. Ouvi-lo, conversar com ele, beneficiar dos seus conhecimentos tecidos por uma vasta e diversificada experiência, por um apurado rigor teórico e por uma incansável esperança doutrinária, são memórias irremovíveis. Foi uma grande honra que Paul Singer tivesse aceitado publicar o livro acima comentado na coleção que dirijo. Foi com júbilo que recebi dele uma expressa apreciação favorável desta edição. Continuará presente entre nós pelos seus textos, pela memória do que foi a sua vida e pela perenidade dos movimentos sociais em que se envolveu. Não o esquecemos. |