TESTEMUNHO
Adelino Maltez Professor Catedrático do ISCSP . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Jorge era meu colega de universidade e meu amigo. Além de irmão. Na antevéspera da sua morte estive em casa dele, em amena cavaqueira, especialmente com o neto bebé. Estava a gozar, finalmente, a aposentação. Foram décadas de quotidiano partilhado. As únicas discórdias eram por causa do rei e dos dragões, de que ele era doente.
Foram anos e anos na mesma escola, conversas quase diárias, rebeldias comungadas, memórias cruzadas, sem apontamentos devidamente apanhados em reportagem. Mas havia uma corda que nos ligava à fundação, de Ernesto Vasconcelos a João Lopes Soares, de Álvaro de Castro, Américo Olavo e Luís Rebordão sempre com a boina basca de Raul Rego. Lemos poemas do santomense Francisco José Tenreiro e do lusitano António de Navarro, tivemos a ajuda de Jorge Dias e Orlando Ribeiro, percorremos as memórias de Almerindo Lessa, vivenciámos as aulas de Agostinho da Silva, demos três abraços a Arnaldo Brazão e a João de Castro Osório, saudámos os diretores Bernardino Machado, Velhinho Correia, Eduardo Lima Basto e até José Gonçalo Santa-Rita. Não esquecemos o guineense James Pinto Bull, bem como o nosso professor angolano, Assis Júnior. Foi em cadeia de união. Nunca saneámos das memórias D. António Ribeiro, Vitorino Magalhães Godinho, nossos queridos professores. E até reverenciámos Luís Sá. Fomos escola rebelde e solitária e nunca posso olvidar, que quando um de nós era sujeito ao ostracismo e a um processo disciplinar, lá estava o Jorge a defendê-lo como cavaleiro andante, usando a espada da palavra, mesmo diante de kafkianos processos. Daí que o Jorge possa ser esquecido como professor e cientista, caso não nos mobilizemos para a publicação dos respetivos escritos e até para recordarmos como produziu a melhor dissertação doutoral portuguesa sobre a abstenção eleitoral, onde se mostra como uma democracia não se mede pelo vértice do hierarquismo e pelo sistema eleitoral que o eleva ao estadão, mas pela qualidade da cidadania e pela principal expressão desta que é o controlo do poder, contra alguma tradição de centralismo absolutista que destruiu as autonomias e o pluralismo, permitindo que o rolo unidimensionalizador das revoluções erigisse as estátuas aos déspotas que cortam o horizonte das avenidas da Liberdade e não entendesse o essencial da poliarquia, onde o pacto de associação sempre foi superior ao pacto de sujeição, interessando saber mais como se controla o poder dos que mandam. Recordemos a lição de Jorge Sá: a abstenção pode significar uma atitude de superior desprezo, em protesto contra a usurpação da democracia por um “l’État c’est lui” de uma oligarquia. Porque quem cala (eleitoralmente) tanto pode consentir como nada dizer. De qualquer maneira, há movimentos e partidos que podem assumir-se como vozes tribunícias, promovendo um esforço de integração no sistema dos marginais ou excluídos.
A presente democracia portuguesa conseguiu ser a mais inclusiva das três que tivemos, desde que, em finais de 1979, os eventuais marginalizados pelo sistema conquistaram o poder evitando o sonho de mexicanização. Superou-se assim o modelo de clausura do partido sistema (o nosso PRP dos “afonsistas”, contemporâneo do PRI), mas mantiveram-se os defeitos do rotativismo devorista (equivalente ao bloco central, onde o PSD se assemelha aos regeneradores e o PS aos progressistas). Nesta obra, mistura-se adequada politologia behaviorista e alguns profetas do pós-behaviorismo com alguma sociologia do “Verstehen”, em nome do clássico “anthropos physei politikon zoon”, onde o natural não é o que está, mas o que deve ser, onde a cidadania é participação, onde o homem, por exigência da perfeição, ou da procura da verdade, só pode aperfeiçoar-se se assumir a “polis” e tratar de procurar um melhor regime e consequentemente um mundo melhor. A lição para o futuro é simples: a presente democracia representativa tem as canalizações representativas enferrujadas. Mesmo que assente na “vontade de todos”, não assume a “vontade geral” de Rousseau, porque cada um pode continuar a decidir pensando nos seus próprios interesses (sondajocracia) e sem assumir-se como o soberano pensando no interesse do todo. Porque há uma deseducação cívica e funciona a nostalgia, imaginando-se a democracia direta do vanguardismo do PREC. Ora, as democracias representativas políticas costumam ser compensadas pela democracia da sociedade civil, do consociativismo. O que não é possível num país submetido ao rolo unidimensionalizador do verticalismo ministerialista, centralizado, concentracionário e capitaleiro. Aliás, não há política democrática, caso não se assuma que a nação é comunidade das coisas que se amam, a tal religião secular só possível depois da Revolução Francesa e de Valmy, com o consequente regresso à Paideia, de forma romântica, onde o povo passou a ser uma comunidade de significações partilhadas (Deutsch). Por cá, depois das doenças da apatia e da indiferença, estamos em azedume e teme-se a explosão, que bem pode vestir-se de rebelião das massas. Tudo tem a ver com o erro do estatismo: o monopólio da política pelo aparelho de poder. Onde o principado ao construir o Estado e ao construir a nação passou a desprezar o horizontalismo da república ou comunidade, onde o Estado somos nós. Num modelo centralista e concentracionário, o estatismo, herdeiro do absolutismo (tanto o do despotismo ministerial como o do povo absoluto) gerou a compressão da autonomia da sociedade civil, sobretudo quando os Girondinos foram guilhotinados pelos Jacobinos que os tentaram reduzir a Vendeianos. Mas a república maior é mera consociação mista, de consociações privadas, comunitárias e públicas. Onde a sociedade perfeita é federação de sociedades imperfeitas. Onde a política é superior à economia. E a origem do totalitarismo está sempre no “cinturão das populações mistas” (Hannah Arendt) sujeitas a aparelhos de poder construtivistas que assentam no niilismo. Importa recuperar o conceito de legitimidade de regime, onde há um acordo de um sistema político com o sistema de valores de um dado sistema social, o qual lhe serve de ambiente. A falta de autenticidade do poder é a medida dessa distância. Degenera um regime quando assim se quebra a confiança pública e o principado pode ser expulso pela comunidade. Quando os fusíveis da má lâmpada elétrica se espatifam. Um regime que dê muita luz pode iludir-nos quanto à confiança pública e as sondagens podem não o medir. Acontece sempre quando se gastam as energias que vão além da persuasão e entram no autoritarismo verticalista do ministerialismo, no ideologismo, na propaganda e na manha dos pretensos animais políticos.
Mais do que na violência das polícias de choque e das agências de controlo do pagamento dos impostos. Recuperando a lição de Max Weber, notemos que racionalidade não é apenas a Zweckrationalität da ética da responsabilidade. É também a Wertrationalität da ética da convicção. A razão é sempre complexa. E os modelos das sociedades pós-totalitárias e pós-autoritárias geraram partidos pigliatutti, attrape-tout e catch-all. Mas estes acabaram por diluir-se no bloco central de interesses das forças vivas e dos consequentes governos da esquerda com temperamento de direita, até porque falharam os conservadores evolucionistas do modelo de ceticismo entusiasta e de criatividade e imaginação, de Disraeli a Churchill. Tudo se agravou com os efeitos da teledemocracia e do centralismo dos governos provisórios, que fizeram partidos de cima para baixo. Tal como a União Nacional, por resolução do Conselho de Ministros dos viracasacas e o partido democrata-cristão (CCP), por deliberação da Conferência Episcopal. Logo, deu-se a transformação do autor da democracia em mero auditor de certos atores que representam um guião clandestino, reduzindo-se a cidadania a um plebiscito face a uma ditadura de perguntadores que se colocam na face invisível da política. Também a Primeira República foi um desvio ditatorial maioritário de um partido-sistema, sem alternativas sistémicas, num regime que foi, em termos de poder de sufrágio, um recuo face ao liberalismo monárquico, e não aguentou comparativamente com a eleição de Carmona em 1928, depois da eleição de Sidónio Pais, onze anos antes. Assim se concluiu, estupidamente, que os autoritarismos plebiscitários podem ter mais legitimidade de povo do que regimes parlamentares. Os trabalhos do Jorge, dispersos por centenas de comentários analíticos na imprensa e enchendo gavetas e discos de computadores, não podem continuar escondidos. Há que os concentrar para edição póstuma, mas, infelizmente, não poderemos dar-lhe a vida de um eterno dissidente, sempre à procura do futuro. Ficou a semente nos colegas, amigos, irmãos e familiares. Sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O Professor Jorge de Sá (1950-2019) faleceu no passado dia 4 de abril de 2019. Exercia as presidências do CIRIEC Internacional e do CIRIEC Portugal e a Vice-Presidência da Associação Portuguesa de Mutualidades. O Prof. Jorge de Sá foi um estudioso e empenhado defensor do papel da Economia Social no desenvolvimento socioeconómico das comunidades e do país. Para além da atividade de estudo e de lecionação exercia as mais altas funções em organizações nacionais e internacionais que abrangem o setor da Economia Social. Esteve ativamente envolvido no processo de construção de um novo edifício legal e institucional da Economia Social em Portugal e na recém criação da Confederação Portuguesa de Economia Social (CPES). CASES
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