CUMPRA-SE SÉRGIO
A Educação cooperativa e as Cooperativas escolares João Salazar Leite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Há semanas atrás passou-me pela vista uma opinião técnica do Tribunal de Contas em que se exigia a uma cooperativa de interesse público em formação, que elaborasse um estudo de viabilidade como condição para que fosse aposto visto prévio do Tribunal à sua constituição.
Mais de quatro décadas depois da Constituição de Abril, verifico que muitos juristas ainda não compreenderam as implicações que decorrem da previsão constitucional de um setor cooperativo e social a par dos setores público e privado, bem como a posterior publicação de um Código Cooperativo em 1980, retirando as cooperativas do Código Comercial de Veiga Beirão de 1888. As cooperativas não devem ser vistas como puras empresas. A filosofia e organização cooperativa, os princípios, valores e a sua aplicação prática, são exigentes e diferentes, a ponto de que uma qualquer lei do Estado que imponha às cooperativas o mesmo tipo de obrigações que impõe às sociedades comerciais, só possa estar errada (sendo que muitas vezes se deveria defender mesmo a sua inconstitucionalidade). Um qualquer estudo de viabilidade solicitado a uma cooperativa deve ser diferente do exigido às empresas lucrativas. O reinvestimento dos resultados finais positivos de um exercício nas atividades futuras da própria cooperativa desvirtua a análise que um técnico economicista faz do projeto cooperativo. Este é, ainda, mais complexo porque tem implicações sociais, e daí que muitos prefiram privilegiar o estudo do impacto social em detrimento do estudo da mera viabilidade económica. Dito isto em breve, não posso deixar de olhar este caso senão como exemplo da falta de educação cooperativa da esmagadora maioria dos meus concidadãos, e recordar o que António Sérgio começou a escrever há um século, escritos que sucessivos Governos se recusam a aplicar no sistema de ensino que é o nosso, penalizando o modelo alternativo democrático de organização que é o cooperativo. As cooperativas não devem ser vistas como puras empresas. A filosofia e organização cooperativa, os princípios, valores e a sua aplicação prática, são exigentes e diferentes No Boletim Cooperativista de outubro de 1955, com o nº 25, que Sérgio titulou de ‘Cooperativas e o Estado’, pode ler-se um artigo em que exigia o cumprimento pelo Estado de um caderno reivindicativo em 8 pontos, dois dos quais nos interessam aqui.
O 4º exigia «a criação de aulas sobre cooperação nas escolas de todos os graus de ensino», e o 5º pedia que fosse considerada «a criação de cooperativas escolares». Quando hoje leciono uma qualquer formação de nível universitário constato que a maior parte dos alunos nunca ouviu falar de cooperativas ou conhece as especificidades do seu modelo. Não se trata de problema apenas português, já que na maior parte dos países europeus ou mundiais que conhecemos tal acontece em maior ou menor grau, o que vem sendo ultimamente reconhecido nos relatórios e textos reivindicativos da União Europeia ou da Aliança Cooperativa Internacional. Mas os problemas que a ignorância causa têm implicações óbvias para o desenvolvimento do modelo cooperativo de organização socioeconómica, sendo tempo de lhes pôr cobro. Quando escreveu a Educação Cívica em 1915, António Sérgio ainda não conhecia a figura da cooperativa escolar. Falava então no município-escola, que se lhe assemelha. Para Sérgio o aluno devia colaborar ativamente nas estruturas organizacionais da escola, tal como depois iria participar na sociedade de base municipal. A escola seria um laboratório de instrução cívica, assente no self-government, onde o aluno aprenderia a desenvolver a sua capacidade de trabalho, a organização e a cooperação. Mais tarde escreveria que só em 1923 lhe chegou ao conhecimento a cooperativa escolar de S. Jean d’Angely, «uma associação – sugerida pelos professores, mas criada por iniciativa dos estudantes – composta dos alunos, antigos alunos e amigos de uma escola, com o escopo principal de dotar esta última do material escolar e das instituições competentes para vitalizar e modernizar o seu ensino, e fomentar a atitude de solidariedade». Constato que a maior parte dos alunos nunca ouviu falar de cooperativas ou conhece as especificidades do seu modelo. Não se trata de problema apenas português Existem hoje várias cooperativas escolares entre nós, algumas criadas logo depois da Revolução dos Cravos, que ainda funcionam, outras mais recentes, inclusive criadas por iniciativa municipal como forma de obviar ao fecho de antigas escolas públicas por não cumprimento dos rácios impostos centralmente por quem não se compadece com critérios que deveriam prever o papel da escola na manutenção, ou alteração para melhor, do povoamento de zonas desertificadas ou em risco de desertificação.
Só que cooperativa escolar não é condição automática para o ensino do cooperativismo. Este não faz parte da esmagadora maioria dos currículos impostos, mesmo nas cooperativas escolares, sendo tempo de uma vez por todas alterar tal omissão. Uma sociedade que se quer pluralista e democrática deve permitir que crianças, jovens e adultos, disponham de conhecimento sobre modelos alternativos e complementares do modelo, que parece que se deseja único, de sociedade de base capitalista. A liberdade de escolha é conquista de Abril, mas só se pode escolher se se conhecerem todos os modelos e as implicações da escolha que se vier a fazer. Não se pede muito, pede-se apenas que se informem Todos de que escolhas há, e em que consistem. Não é preciso ir muito longe para se verem os resultados de políticas públicas no domínio do ensino do cooperativismo e da criação de cooperativas escolares. Estou a referir-me à Andaluzia, ou à região autónoma de Múrcia, aqui ao nosso lado, onde há décadas está implantado com sucesso o ideal de Sérgio. A pequena região autónoma de Múrcia é neste momento, em toda a Europa, a líder na criação de cooperativas. Dela sai a presidência da Confederação espanhola de Economia social, a liderança das organizações internacionais de defesa da economia social sedeadas em Bruxelas ou com atividades na bacia mediterrânica, a representação espanhola na Aliança Cooperativa Internacional. E tudo, porque desde a mais tenra idade se ensina cooperativismo nas escolas primárias e secundárias, permitindo que os alunos, uma vez chegados à idade ativa, possam entrar no mercado de trabalho pelo recurso à criação de empresas cooperativas. É educativa a consulta do sítio da ACES – Associação Andaluza de Centros de Ensino de Economia social, nascida em 2001. Ela contava com 131 empresas associadas em julho de 2017 – nos subsetores da Educação Infantil Específica, Educação Não Regulamentada, Educação Compulsória e Pós-Obrigatória e Educação Especial –, envolvendo mais de 1.800 trabalhadores e mais de 28.000 alunos matriculados nos seus centros. Uma sociedade que se quer pluralista e democrática deve permitir que crianças, jovens e adultos, disponham de conhecimento sobre modelos alternativos ao modelo de sociedade de base capitalista Mas mais importante que os números é a referência ao método usado nas escolas, cabendo ao leitor compará-lo com o que Sérgio preconizou há um século atrás. Retiro do sítio, não na íntegra, nem literalmente em toda a extensão:
A metodologia utilizada é a de ‘aprender fazendo’, sendo os alunos protagonistas da própria aprendizagem. São eles quem tomam as decisões e as executam, cabendo ao professor acompanhar, orientar, estimular e fazer os jovens refletir sobre os passos que escolheram. Os projetos empreendedores foram inicialmente pensados para alunos do 5º e 6º ano da educação primária, estando hoje estendidos a outros graus do ensino, inclusive a cursos da infantil. Os alunos desenvolvem os seus próprios projetos, ou implicam-se e colaboram nas cooperativas dos seus companheiros mais velhos. São os próprios rapazes e raparigas que definem o objeto da sua cooperativa, redigem os seus estatutos, elegem com dramatismo os seus representantes, decidem que produtos vão confecionar na aula, avaliam o trabalho realizado e decidem em que atividade investir os benefícios alcançados. Mas, antes disso, devolvem o capital inicial aos sócios, e só depois destinam parte dos benefícios a uma ONG escolhida pela sua cooperativa. A empresa que puseram em marcha pelo fabrico dos seus produtos ou pela prestação de certos serviços ensina-os a avaliar os caminhos escolhidos e, no final do ano, a comparar o que fizeram com o que outras turmas e escolas igualmente desenvolveram, pois é prática da Associação a organização de uma ou mais jornadas intercooperativas, tipo feira, em que toda a Andaluzia participa (alunos, famílias, professores, autoridades, curiosos). Em Múrcia organizam-se, até, uma espécie de mini olimpíadas em que participam alunos das cooperativas escolares às quais assistem pais e professores. Dados de 2015 referem a constituição de 355 turmas/cooperativas escolares na comunidade andaluza, em que participaram mais de 8.000 estudantes e 280 docentes. A terminar fica a pergunta: não somos capazes de seguir caminho idêntico? Seria a justa homenagem a António Sérgio, agora que se encerram as comemorações do cinquentenário da sua morte. E, no futuro, não teríamos burocratas a emitir pareceres que dificultassem o já penoso caminho imposto às cooperativas para uma plena atuação no mercado. Ao João Salazar Leite Uma organização é feita de pessoas com suas qualidades e defeitos, conhecimentos e competências, a todos os níveis da sua estrutura. O fluxo de entradas e saídas de pessoas nas organizações é, em regra, uma questão tendencialmente burocrática não se lhe dando relevo público. No caso em apreço venho contrariar essa quase fatalidade. João Salazar Leite aposentou-se. A partir de 1 de setembro do presente ano deixou de prestar serviço na CASES onde o conheci. Desempenhou funções técnicas e dirigentes na CASES tendo-o encontrado com fama de “pessoa difícil” um traço de personalidade que serviu, a meu ver, mais para lhe sonegarem os méritos do que para lhe apreciarem as virtudes. Ora a verdade é que em Portugal existem, para ser benévolo, uma dúzia de personalidades que pensam e estudam, de forma estruturada e consistente, o cooperativismo e a economia social. João Salazar Leite é uma delas tendo dado à estampa uma obra relevante versando os temas da sua predileção, além de inúmeras participações em eventos públicos e estruturas de missão, a nível nacional e internacional. Agradeço publicamente a sua dedicação, lealdade e amizade ao longo de tanto tempo de serviço público, no que me toca conhecer, no âmbito das atividades do INSCOOP e da CASES. É difícil escrever uma espécie de louvor a quem sempre considera que o seu trabalho não é mais do que uma obrigação que resulta de um vínculo não burocrático e livre a um programa no qual cabe de parte inteira a reflexão e o pensamento. Mas não poderia deixar de expressar publicamente a minha admiração pela sua capacidade de formular propostas, a sua irreverência no debate de ideias, a sua retidão no cumprimento das inúmeras missões que lhe foram cometidas, o seu cuidado em construir pontes, mesmo quando a um olhar menos atento, parecia destruí-las. A sua obra está presente e disponível e cuidaremos de a divulgar o melhor que pudermos e soubermos, sempre disponíveis para acolher novos contributos. Eduardo Graça |