João Salazar Leite
Cooperativista
Cooperator |
DEZ ANOS DE LEI DE BASES
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Bem teria gostado de escrever algo de mais positivo, ao aceitar o convite que me foi feito para celebrar o décimo aniversário da Lei de Bases de Economia social.
Compreenderão que, reformado que estou, posso estar a incorrer em juízos desinformados. Mas escrevo sobre o que leio, sobre o que não vejo nos meios de comunicação a que acedo, e sobre maiores ou menores violações dos princípios cooperativos e das leis que regulam as diferentes famílias da economia social. Como noutro lugar deixei escrito, o meu grande desgosto nos mais de 40 anos de ligação ao setor cooperativo, depois cooperativo e social, constitucionalmente consagrado, foi o de nunca se ter plenamente completado em lei o normativo prometido na Constituição da República. Daí resultou que cooperativas, e depois demais organizações da economia social, nunca puderam competir com as organizações dos setores público e privado dos meios de produção em total igualdade. Nos cidadãos ficou a pairar a ideia, de se estar perante soluções de último recurso na resolução de problemas que enfrentam nas suas vidas e economias, quando a solução coletiva oferecida pelo setor cooperativo e social é tão válida como outra qualquer, diria até mais acessível às classes que mais necessitam de ver ultrapassadas situações de desigualdade ou desequilíbrios de toda a ordem. O padrão manteve-se uma vez aprovada a Lei de Bases cuja década de vida se comemora. Onde já vão os seis meses que eram prometidos para fazer publicar diplomas de concretização do articulado aprovado? Nem sequer os dirigentes das organizações de cúpula da economia social parecem preocupar-se com tal facto. Não me venham invocar que foi por causa da Covid ou da Guerra, que foi por não reunir o Conselho Nacional de Economia Social, ou que foi a Cases/Ministério que se opôs à regulamentação legal em falta. Os anos que já leva de vida a Confederação Portuguesa de Economia Social são tempo suficiente para o desbloqueio da situação, se vontade existisse. É tempo de esses dirigentes porem de lado protagonismos e mágoas por não conseguirem um total controlo do caminho de futuro da organização. Ainda me lembro da catástrofe de última hora que esteve para acontecer na cerimónia de constituição da estrutura a que se chamaria CPES, quando a Igreja Católica quis à última hora inviabilizar que um dos delegados de uma das organizações membros assinasse o pacto constitutivo. Nada de novo, porém, se me lembrar do que 35 anos antes sucedera depois da aprovação, pelo 5º Congresso do Mutualismo, da Carta Portuguesa de Economia Social. A efeméride, não foi recordada o ano passado, tal como o não foi o 30º aniversário da 3ª Conferência Europeia de Economia social – primeiro grande evento ocorrido no Centro Cultural de Belém, durante a 1º presidência portuguesa da CEE, nas hoje salas do ex- Museu Berardo, aquela que ainda hoje foi a mais participada de todas as Conferências europeias realizadas. Em ambos os eventos se abordaram temáticas de economia social, se assumiram compromissos que poderiam ter antecipado a década agora evocada, e que, bem estudado o que depois aconteceu, não faz estranhar palavras esquecidas e delongas supervenientes. Já então foi a ânsia de protagonismo de uns que veio a destruir o caminho comum, e já então querelas internas às obediências católicas tiveram um papel ativo nos acontecimentos posteriores. Organizações económicas centradas no Homem… Claro que outras razões houve, políticas até ou sobretudo, mas nada impediu a hibernação do conceito, que mais tarde nos foi imposto a partir de fora, da agora União Europeia, e em parte também pelos pensadores ligados a escolas espanholas de pensamento, que mais assiduamente começaram a encontrar-se com os poucos colegas do nosso país. Nas conclusões da Conferência de Lisboa de 1992 a expressão economia social surge expressamente em 6 das 17 conclusões aprovadas. Na Carta Portuguesa surge-nos o conceito de economia social, o modo como se organiza a iniciativa de economia social, os objetivos, os princípios de funcionamento e a intercooperação entre cooperativas, mutualidades e associações que, sem prossecução do lucro, visam o serviço e o desenvolvimento da comunidade em que se inserem. A Lei de Bases aproveitou-a em muitos aspetos. Há que retirar da efeméride todas as possibilidades para completar e atualizar o edifício jurídico. Verificar se existem questões a corrigir no Código Cooperativo e legislação complementar, no Código do Mutualismo, no Código Civil para as associações, na lei das IPSS, no diploma das cooperativas de interesse público, na legislação comercial e fiscal que se aplica às entidades de economia social, etc., e analisar se é útil abrir uma nova frente de disputa jurídica com uma eventual lei das empresas sociais, ou de figuras jurídicas importadas de outras latitudes e que não cumprem princípios e práticas cooperativas e de economia social na totalidade das suas ações e formas constitutivas. Há que pôr ordem na casa e aceitar uma fiscalização ativa das organizações por parte das Confederações e Federações do setor da economia social e do Estado, este supletivamente apenas. Só para citar notícias recentes que demonstram violações da lei, falta de controlo do setor, deficiente espírito cooperativo, incapacidade de verificar as condições de funcionamento das IPSS e outras entidades: Licor Beirão compra adega cooperativa no distrito de Portalegre; em Diário da República surge diploma do Ministério da tutela do setor em que se abordam relações laborais nas adegas cooperativas, sendo que estas surgem representadas por uma Associação de adegas cooperativas; as cooperativas de habitação são apontadas como atores integrantes do novo pacote sobre Habitação, quando se ouvem os autarcas dizer que não foram consultados na matéria, o que é mau já que são eles que terão de disponibilizar os terrenos em que se poderão construir as casas – seria bom que se produzisse o renascimento deste tipo de cooperativas, mas já agora direi que haveria que ser muito rigoroso no impedir de que quem aceda a uma casa não a possa vender no dia seguinte no mercado livre, desvirtuando o objetivo de propiciar casas a quem verdadeiramente delas necessita; nos lares IPSS repetem-se notícias de maus tratos aos idosos, de remédios fora de prazo, de comida podre, de encerramentos após mediatizadas vistorias e inspeções. E poderia continuar, no cooperativismo do terreno, com as cooperativas leiteiras ou de distribuição que criam sociedades comerciais, permitindo que os dirigentes se perpetuem no controlo do negócio, vulgo poder; com cooperativas de transporte que, em novas eleições, mantêm na presidência da direção o mesmo indivíduo há mais de 4 décadas; com cooperativas agrícolas que aceitam introduzir o voto plural em função do capital e não da atividade desenvolvida, vulgo da participação social. O necessário debate que se vai produzir não pode esquecer que uma coisa são figuras jurídicas e sua regulamentação, outra é a atividade ‘social’ desenvolvida pelas diversas entidades. A Constituição da República apontava no sentido da regulamentação de figuras jurídicas até à revisão de 1989. Ao setor cooperativo adicionou-se então o social, sem cuidar de separar a atividade da regulamentação. Já então existia um diploma para as IPSS, que falava delas como sendo ‘privadas’ e não como ‘particulares’ (a mudança não corresponde a uma figura jurídica de clareza evidente). Mas seguimos, então, o caminho que nos pareceu capaz de fortalecer o setor da economia social e que desembocou na criação em 2016 da Confederação Portuguesa de Economia Social. Querem agora reabrir a discussão com a proposta de um diploma sobre Empresas sociais. Elas são uma realidade em toda a Europa. Só que de economia social só poderão ser as que cumprem os princípios claramente presentes no articulado da atual Lei de Bases. Não se pode fazer um diploma que automaticamente meta todas as empresas sociais no setor cooperativo e social, introdução feita a partir do termo. Não me parece ser de alterar o que já consta da Lei de Bases atual. Sei que o lobby contrário à minha posição é cada vez mais forte, mas há que garantir, até para justificar os benefícios financeiros e fiscais para que aponta a Constituição da República, que o oportunismo de uns não prejudique os esforços de muitos. O Mundo irá evoluir sem mim, o que hoje é considerado verdade poderá deixar de o ser. Mas enquanto não surgir uma nova Constituição da República haverá que honrar a presente e os seus pais e inspiradores, que personalizo em Henrique de Barros e António Sérgio. Há um setor cooperativo e social que tem princípios e regras de funcionamento e pertença. Defendo aqueles e estas. Por isso faço transparecer o que deixei escrito. |
I would have liked to write something more positive by accepting the invitation to celebrate the tenth anniversary of the Framework Law for the Social Economy.
You will understand that, retired as I am, I may be making uninformed judgements. But I write about what I read, about what I do not see in the media I access and about major or minor violations of the cooperative principles and the laws that regulate the different families of the social economy. As I have written elsewhere, my great regret in the more than 40 years of connection to the cooperative sector, then cooperative and social sector, constitutionally consecrated, was that the normative promised in the Constitution of the Republic was never fully completed in law. As a result, cooperatives and then other social economy organisations have never been able to compete with organisations in the public and private sectors of the means of production on a completely equal footing. Citizens are left with the idea that they are faced with solutions of last resort to solve problems they face in their lives and economies, when the collective solution offered by the cooperative and social sector is as valid as any other, I would even say more accessible to the classes that most need to see situations of inequality or imbalances of all kinds overcome. The pattern was maintained once the Framework Law which decade of life is being commemorated was approved. What happened to the six months that were promised for the publication of diplomas to implement the approved articles? Not even the leaders of the social economy's umbrella organisations seem to care about this. Do not tell me that it was because of Covid or the War, that it was because the National Council of the Social Economy did not meet, or that it was Cases/the Ministry that opposed the missing legal regulation. The years that the Portuguese Confederation of the Social Economy has been alive are enough time to unblock the situation, if the will existed. It's time for those leaders to put aside their protagonisms and their regrets for not being able to have total control of the organisation's future path. I still remember the last minute catastrophe that was about to happen in the constitution ceremony of the structure that was to be called CPES, when the Catholic Church wanted at the last minute to prevent one of the members of one of the member organisations from signing the constitutive pact. Nothing new, however, if I recall what happened 35 years before after the approval of the Portuguese Social Economy Charter by the 5th Mutualist Congress. This event was not remembered last year as well as the 30th anniversary of the 3rd European Conference on the Social Economy - the first great event that took place in the Belém Cultural Centre, during the 1st Portuguese Presidency of the EEC, in the halls of the former Berardo Museum, which still today is the most attended of all European Conferences held. Both events dealt with issues of social economy, commitments were made that could have anticipated the decade now evoked and, if we study what happened afterwards, it is not surprising that the words were forgotten and the delays were supervening. Already then it was the desire for protagonism of some that destroyed the common path, and already then internal quarrels within the Catholic obedience played an active role in subsequent events. Man-centred economic organisations… Of course there were other reasons, political ones even or more so, but nothing prevented the hibernation of the concept, which was later imposed on us from outside, from the now European Union, and partly also by thinkers linked to Spanish schools of thought, who began to meet more assiduously with the few colleagues from our country. In the conclusions of the Lisbon Conference of 1992, the expression social economy appears expressly in 6 of the 17 conclusions adopted. The Portuguese Charter presents us with the concept of social economy, the way in which the social economy initiative is organised, the objectives, the operating principles and the inter-cooperation between cooperatives, mutual societies and associations that, without seeking profit, aim to serve and develop the community in which they operate. The Framework Law took advantage of this in many aspects. We must take from the ephemeris every opportunity to complete and update the legal framework. Check whether there are issues to be corrected in the Cooperative Code and complementary legislation, the Mutualism Code, the Civil Code for associations, the IPSS (Social Solidarity Private Institutions) law, the diploma on cooperatives of public interest, the commercial and fiscal legislation that applies to social economy entities, etc., and analyse whether it is useful to open a new legal dispute front with a possible law on social enterprises, or legal figures imported from other latitudes and which do not comply with cooperative and social economy principles and practices in all their actions and constitutive forms. We must put our house in order and accept an active supervision of the organisations by the Confederations and Federations of the social economy sector and by the State, the latter only in a supplementary capacity. Just to mention recent news showing violations of the law, lack of control of the sector, poor cooperative spirit, inability to verify the operating conditions of IPSS and other entities: Licor Beirão buys a cooperative winery in the district of Portalegre; in the Official Gazette there is a diploma from the Ministry responsible for the sector that deals with labour relations at cooperative wineries, which are represented by an Association of cooperative wineries; housing cooperatives are mentioned as integral actors of the new Housing package, when we hear mayors say that they were not consulted on the matter, which is bad, since they are the ones who will have to provide the land on which the houses can be built - it would be good to produce the rebirth of this type of cooperatives, but I will say now that we should be very strict in preventing those who access a house from selling it the next day on the free market, distorting the objective of providing houses to those who really need them; In IPSS homes, there are repeated news of ill-treatment of the elderly, out-of-date medicine, rotten food, and closures after mediatised inspections. And I could continue, in cooperatives of the land, with the dairy or distribution cooperatives that create commercial enterprises, allowing the leaders to perpetuate themselves in control of the business, known as power; with transport cooperatives that, in new elections, keep the same individual in the chair for more than four decades; with agricultural cooperatives that accept the introduction of plural voting according to the capital and not the activity developed, known as social participation. The necessary debate that will take place cannot forget that one thing is legal figures and their regulation, another is the “social” activity developed by the various entities. The Constitution of the Republic pointed in the direction of regulating legal figures until the 1989 revision. The social sector was then added to the cooperative sector without taking care to separate the activity from the regulation. There was already a diploma for the IPSS, which spoke of them as “private” and not as “separate” (the change does not correspond to a juridical figure of obvious clarity). But we then followed the path that we felt was capable of strengthening the social economy sector and that led to the creation of the Portuguese Confederation of the Social Economy in 2016. They now want to reopen the discussion with proposals for a Social Enterprises diploma. They are a reality all over Europe. However, social economy enterprises can only be those that comply with the principles clearly present in the current Framework Law. We cannot create a diploma that automatically places all social enterprises in the cooperative and social sector. I do not think it is necessary to change what is already in the current Framework Law. I know that the lobby contrary to my position is increasingly strong, but we must guarantee that the opportunism of some does not harm the efforts of many, even to justify the financial and fiscal benefits pointed out by the Constitution of the Republic. The world will evolve without me, what is considered true today may cease to be so. But until a new Constitution of the Republic appears, we must honour the present one and its fathers and inspirers, whom I personalise in Henrique de Barros and António Sérgio. There is a cooperative and social sector that has principles and rules of operation and belonging. I defend those principles and rules. That is why I make what I have written clear. |
