LIBERDADE - Evocar António Sérgio (1883-1969) a propósito da comemoração do 25 de abril de 1974, no centenário da publicação do primeiro volume dos Ensaios (1920-2020)
João Gonçalves Sergiano, professor de Filosofia, atualmente Delegado Regional de Educação do Norte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Para um Sergiano, evocar António Sérgio(2) a propósito do 25 de abril de 1974 é um exercício doloroso. Sérgio, um dos portugueses mais radicalmente implicados com a Liberdade na luta contra o Estado Novo e um daqueles que desde mais cedo iniciou essa longuíssima oposição – lutando incessantemente; sendo preso, perseguido e humilhado; sofrendo duramente os exílios; colocando-se ao lado de Norton de Matos e incentivando a candidatura presidencial de Humberto Delgado –, morre em Lisboa em 24 de janeiro de 1969, descrente de toda a sua incansável jornada, sem ver a luz da liberdade conquistada. Morre, sem saber que toda a sua ação foi imprescindível semente de futuro da centelha da Liberdade e da Democracia em Portugal. 1. António Sérgio e eu – Ser Sergiano Sérgio foi-me apresentado numa sala de aula da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pelo Professor Aloísio Lobo, na disciplina de Filosofia em Portugal do curso de Filosofia. A empatia que se criou entre os dois – Sérgio e eu – foi de tal ordem que, até hoje, é certamente o Amigo com quem mais horas passei a conversar, o Mestre com quem mais aprendi, o Ser Humano com quem mais me identifico intelectualmente. São vinte e seis anos de leituras, de reflexão e de reconstrução; de longuíssimas horas passadas nos alfarrabistas, em busca das suas obras, bem como das dos seus críticos e comentadores; são muitas horas sentado na biblioteca do autor(3), a manusear os seus livros (os mesmos que ele manuseou, leu e estudou cuidadosamente – biblioteca imensa –; cheios de escritos e pequenas notas nas páginas, nas lombadas e no papel cebola com que os forrava). Tem sido uma maravilhosa viagem interminável ao “mundo interior” do maior intelectual português do Séc. XX. Obrigado Amigo Sérgio! Do que aqui revelo, resultará claro que lembrar António Sérgio é partilhar convosco uma paixão intelectual. Desta paixão resultou uma enorme coleção bibliográfica. Mas, o problema, é que Sérgio foi um autor cujos escritos não têm fim (o Arquiteto Campos Matos continua, ao fim de décadas, a descobrir mais e mais coisas para acrescentar a uma bibliografia que, sabemos, será sempre interminada). Mais importante do que tudo isso, lembrar Sérgio é oportunidade de fazer reviver o seu pensamento e a sua ação. Como muito bem afirma o João Príncipe (um notabilíssimo Sergiano) “O seu percurso como homem e cidadão mostra uma íntima união entre o exercício da razão pura e o exercício da razão prática, sendo a sua personalidade um exemplo para os amantes da justiça, da liberdade e da cultura.” (Príncipe, João, 2004. Razão e Ciência em António Sérgio, Coleção Temas Portugueses, INCM). Afigura-se-me tratar-se, na esteira apenas do Antero e do Herculano, de um vulto maior da cultura portuguesa. Um dos pouquíssimos portugueses de pensar efetivo e amor intelectual puro; o único, seguramente, com uma tal entrega às “pedras vivas” do nosso “país real”, por amor a Portugal e ao povo português – aos quais devotou a sua vida. E Sérgio foi tudo isto – e mais, como à frente veremos – por uma razão simples: foi o português mais cosmopolita e contemporâneo do seu próprio tempo, num país dramaticamente atrasado relativamente à europa e ao mundo. Não cabe aqui uma exploração biográfica do demopedagogo Sérgio.(4) Proponho-me sim, sobretudo para os menos conhecedores, deixar algumas linhas matriciais de leitura da ideação (pensamento-ação) sergiana(5), quer a propósito da comemoração do 25 de abril de 1974, quer lembrando que transcorre agora o ano em que se assinala o centenário da publicação do primeiro volume dos seus Ensaios. Sérgio, hoje, é um autor esquecido, desconhecido, cedo abandonado pela academia (que durante o Estado Novo também sempre o rejeitara), estranhamento (ou não…) e nebulosamente obliviado do Portugal contemporâneo (recusado antes do 25 de abril e gradualmente esquecido depois). Colocou a sua vida ao serviço da pátria tentando um caminho de rutura com o atraso de Portugal face à Europa. Por isso, por decorrência direta dessa opção, sofreu duramente toda a sua vida. É impressionante (chocante mesmo!) a atualidade de grande parte do seu pensamento, nomeadamente o pedagógico (demopedagogia, pedagogia social e pedagogia escolar). Colocando-se na oposição ao Estado Novo, sofreu perseguições, exílios – por vezes longos –; cárceres, apreensões de livros, receios de publicar, ataques, calúnias, vexames, mais do que seria normal suportar, sempre com estoicismo e até com alguma audácia, afirmando e aplicando as ideias em que acreditava. Dedicou todo o seu labor à (i)reforma da mentalidade do Povo português e à (ii)construção de um país livre, mais culto, desenvolvido e justo. Assumiu para si um radical apostolado cívico. Mas afinal, porque lutava Sérgio? 2. António Sérgio e Portugal – Sonhador primevo da Liberdade de abril de 1974
Com 27 anos Sérgio decidiu mudar de vida. Face ao gritante atraso de Portugal no contexto dos países que avultavam no mundo, propôs-se resolver problemas crónicos do país (relativamente à Europa e ao mundo). Iniciou então “a carreira de doutrinador constante que, em todas as andanças da ação política, só via pretextos para a preparação pedagógica, e para o esclarecimento do povo.” Focava-se nos problemas crónicos do país, massacrado pela pesada herança do rotativismo e ainda recém-saído do ultimatum inglês (entre os quais emergia de forma inexorável o problema educativo), “problemas de vulto para cujas soluções económicas, educacionais e cívicas se não tinham munido de preparação adequada os tribunos republicanos da propaganda” (Ensaios, vol. III, 1932). O seu desígnio foi o da mobilização de uma elite que operasse uma reforma da mentalidade geral, nela despertando uma exigente consciência ética (programa atualíssimo!). “O apóstolo atua não na política, na demagogia, no partidarismo ou no mando, mas no setor da economia cooperativa e também no da escola primária e secundária” (Notas aos Sonetos de Antero, 1909). Este apostolado cívico valeu-lhe contrariedades e sacrifícios de vária ordem. A sua ação atraiu a hostilidade de todos os quadrantes da vida política e pública da época porque contrariava o messianismo da república triunfante (por exemplo, Sampaio Bruno); contrariava o catolicismo politizado defendendo a visão franciscana do reino de deus; contrariava os ateus, defendendo uma visão espiritualista e o amor intelectual de deus; contrariava os jacobinos e déspotas (parte significativa dos fundadores da república) defendendo uma “democracia aristocrática” que respeitasse as minorias e a natural autonomia dos poderes locais (influência do municipalismo de Herculano); contrariava o liberalismo burguês e o socialismo estatista defendendo o cooperativismo (Sérgio, na esteira do Antero, era um socialista de matriz Proudhoniana); contrariava o liberalismo burguês porque escraviza às regras do mercado e o autoritarismo estatal (Socialista ou Fascista) porque escraviza ao centralismo e à uniformização (em ambos os casos há profundo desrespeito pelo indivíduo e pelo primado da liberdade individual). Assumia o cooperativismo como terceira via. O Homem Cooperativo como o Terceiro Homem, livre do liberalismo ou do estatismo (a esse tema dedica, entre outros escritos, as Cartas do Terceiro Homem). O seu liberalismo era depurado da visão económica baseada na concorrência e no lucro. No fundo, António Sérgio cultivou “o sonho de um país melhor, pela educação do povo e pela reforma das mentalidades” e pensava, trabalhava e agia para a sua concretização, independentemente das consequências nefastas que à sua vida adviessem, bem como dos seus interesses pessoais. Nesta luta intrépida emergiram as prisões e os exílios. (i)O exílio de Paris de 1927 a 1933 (não foi preso, porque é avisado da detenção e foge); (ii)a prisão de 1933 - preso no dia 10 de julho por suspeita de envolvimento em movimento subversivo contra a ditadura e libertado 8 meses depois; (iii)a prisão de 1935(6) - preso em 27 de agosto por “motivo político”. Mantido incomunicável, é interrogado em 9 de setembro de 1935 (Prisão e interrogatório pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, Secção Política e Social). Depois do interrogatório é enviado para o Aljube. Na verdade Sérgio mantinha ligações, desde 1926, para fomentar uma revolta contra a ditadura, mantendo-se sempre como doutrinador e preconizando métodos pacíficos e de persuasão (ou seja, sempre acreditou na possibilidade das eleições mudarem o regime). Não se tendo conseguindo provar nada, aconselha-se o exílio. O governo decreta-lhe o exílio em 19 de novembro de 1935. A 21 de Dezembro, três dias antes da ceia de Natal, é posto na fronteira; (iv)novo exílio em Madrid; (v)a prisão de 1948 – preso à saída de casa de Norton de Matos onde esteve em reunião preparatória da campanha eleitoral para a presidência da república, e logo libertado; (vi)a prisão de 1958 - preso por a sua assinatura figurar em manifestos subversivos ao lado da de Humberto Delgado, e logo libertado. Todas as detenções (com exceção de uma primeira, aquando a instauração da república, que aqui não refiro) tiveram sempre motivo político ligado à luta contra a ditadura do Estado Novo. Mas a sua postura não lhe custa apenas os exílios e a liberdade. Custa-lhe uma vida duríssima em que – num país com uma academia e uma intelectualidade retrógradas –, luta permanentemente para trazer clarividência, ciência e pensamento crítico aos temas que formatavam a cultura portuguesa e a cultura dos portugueses. É neste contexto que emerge uma das facetas mais conhecidas do nosso autor: a veia polemista(7). O significado destas polémicas, ou o seu objetivo, prendeu-se sempre com a necessidade de impedir que ideias erradas deturpassem a imagem que o povo tinha do País em que vivia, bem como da sua história e situação face ao mundo contemporâneo, adiando, por via desses equívocos que se cultivavam, a reforma das mentalidades que preconizava Sérgio como condição do renascimento nacional. Como afirmei acima, Sérgio foi o português mais cosmopolita e contemporâneo do seu próprio tempo. Para além das determinantes biográficas de infância e juventude, génese de tal hodiernidade de visão (o jovem Sérgio falava quatro línguas, para além da materna e vivera já em três continentes), quer os estudos em Genebra (1914 a 1916), quer o exílio de Paris (1927 a 1933) foram cruciais. Entre abril de 1914 e julho de 1916 estuda, com a mulher, Luísa Sérgio, no Instituto Jeans-Jacques Rousseau em Genebra - Suíça. Aí conviveu com o que de mais avançado se pensava e fazia na Europa e no mundo ao nível da investigação em educação, sendo influenciado pelos métodos pedagógicos de Dewey(8). Essa escola de Genebra foi o microcosmos mais influente no movimento internacional de renovação educativa do início do século XX. Sérgio e Luísa conviviam(9), entre muitos outros, com Adolphe Ferrière (1879-1960), um dos fundadores da Escola Nova e talvez o seu maior teorizador e com Eduardo Claparede (1873-1940), neurologista e psicólogo fundador o Instituto Jeans-Jacques Rousseau (fez estudos na área da psicologia e da memória e suas relações com a pedagogia). No exílio parisiense visitavam, por exemplo, a casa de Paul Langevin (1872-1946), notável físico francês (amante de Marie Curie). Descrevo estas vivências para deixar claro qual o motivo de Sérgio ter dedicado a sua vida ao apostolado cívico. Sempre que regressava a Portugal, António Sérgio confrontava-se com o enorme atraso do seu país e do seu povo, vendo como absolutamente crucial a reforma das mentalidades e a luta contra a ditadura. É precisamente nesta fase (1914-1916) que Sérgio configura o núcleo central do seu pensamento pedagógico. Elenco as áreas sobre as quais produziu obra, bem como o nome e ano da obra: 1. Novos processos de educação infantil (Advertência a O Método Montessori de Luísa Sérgio, 1915); 2. Ligar a educação popular às atividades produtoras da região da escola (A função social dos estudantes, 1917; Educação Profissional, 1916); 3. Estudar a nossa história à luz das determinantes económico-sociais (Considerações histórico-pedagógicas, 1915); 4. Proclamar a indispensabilidade de bolsas de estudo no estrangeiro (O problema da cultura e do isolamento, 1914); 5. Combater o ensino puramente mnemónico (Noções de zoologia, 1917); 6. Treinar futuros cidadãos democratas pelo emprego dos métodos da democracia política (Educação Cívica, 1915); 7. Um plano de organização do ensino público, em que se sublinhasse o proveito de desenvolver o ensino de continuação (O ensino como fator de ressurgimento nacional, 1918; Escalas de nível dos pontos mentais, 1919). Mesmo num texto de 1957 (aos 74 anos de idade) Sérgio remete apenas para textos de 1914-1919, quanto ao cerne do seu pensamento pedagógico. Podemos até restringir a um período mais curto o lançamento dos seus fundamentos – e a presença na Suíça, como afirmo acima, foi crucial tendo Sérgio sido profundamente influenciado pelas ideias em voga no Instituto Jeans-Jaques Rousseau. Podemos, dizia eu, centrar numa trilogia de obras, a que poderíamos chamar “Não ficar esperando…”, o âmago das suas ideias pedagógicas: (i)Educação Cívica(10) (A Águia n.º 30, junho 1914 - artigos); (ii)Considerações histórico-pedagógicas (março de 1916, Renascença Portuguesa), (iii)Cartas sobre Educação Profissional(11) (agosto de 1916, Renascença Portuguesa) Hameline e Nóvoa, estudiosos de Sérgio, a quem se deve a descoberta de um texto autobiográfico do nosso autor no livro de honra do Instituto Jeans-Jaques Rousseau, na Suíça, bem como a sua análise e exploração cuidada, afirmam que “Grande parte do ideário pedagógico Sergiano está por realizar: a nossa escola continua a ser do alfabeto e não do trabalho; o nosso ensino continua impregnado de heteronomia e não de autonomia. Pior ainda, deixou de se saber querer outra coisa.” (Hameline & Nóvoa, 1990)(12). No campo pedagógico Sérgio não foi um produtor de ideias originais. Foi um excelente divulgador e tratou de adaptar o que de mais avançado se pensava e fazia na Europa e Estados Unidos para a realidade portuguesa. A pedagogia sergiana tem a capacidade de ler os problemas educativos nacionais no seu concreto contexto social e de ser uma proposta que, não se distinguindo pela originalidade, é portadora de uma forte capacidade de intervenção estratégica no universo educativo na nação – movimento de renovação que encerra o ciclo da instrução. É no exílio de Paris (1927-1933) que Sérgio entra em contacto de forma mais profunda com o cooperativismo(13). Charles Gide (cooperativista francês), citado pelo nosso autor, afirma «Platão e Aristóteles haviam perfeitamente distinguido a especulação, que se propõe, não um objetivo socialmente útil, mas somente o lucro individual, - do comércio que tem por fim a satisfação das necessidades de todos». É a partir do momento em que conhece as doutrinas cooperativistas dos teóricos franceses, e a elas adere, que Sérgio inicia uma forte ação de apostolado social cooperativista, que se traduz em extensa produção bibliográfica e decisivas iniciativas. De 1934 a 1959 publica 13 obras sobre o cooperativismo e centenas de artigos em revistas e jornais, para além de fundar o Boletim Cooperativista. “Feição caraterística dos cooperativistas típicos é que se não ficam esperando pela atuação de um chefe; atuam eles, fazem eles. Há algo de teocracia, de superstição, de selvático, nesse sempre ansiar por um alto senhor que chefie: e é preciso que se apague do pensar dos homens o prestígio e a magia da palavra «chefe».” Não pode entender-se o cooperativismo sergiano desintegrado da sua visão globalizante do socialismo libertário que encara, na esteira de Antero, as questões económicas de um ponto de vista essencialmente moral, e que baseia o progresso no esforço moral; que cultiva o amor da liberdade e da iniciativa do indivíduo; que busca realizar-se por meios pacíficos. Como ficou já dito, Sérgio, como Antero, era um socialista de matriz Proudhoniana. A este propósito afirma: “creio que o socialismo só teria a ganhar se se desprendesse da farragem do «materialismo-dialético»” “(…) porque vejo no socialismo uma aplicação da Razão(14), e não porque conceba a organização socialista como resultado de um jogo de conceitos em guerra, de uma evolução materialística da matéria social”. “O revolucionismo verdadeiro não está nas coisas, mas sim em nós”. “Há sempre soluções antirrevolucionárias para todos os problemas do viver social (…)”, mas “no instante em que a mente do «materialista» repele essas soluções antirrevolucionárias, os ideais da Razão acham-se nela [na mente] implícitos (…)”. “Ninguém é socialista por se conformar com a matéria, mas sim por apego a um ideal de justiça, a um protesto interior”. Para António Sérgio, “a democracia é uma marcha para um determinado ideal” e esse ideal não pode ser outro senão a construção de uma democracia social num mundo de Liberdade e Justiça (Cfr. Prefácio da segunda edição do primeiro volume dos Ensaios). As suas doutrinas e a sua ação foram fermento imprescindível, junto de várias gerações de jovens, sem o qual não se teria criado o ambiente que conduziu à revolução(15). Face a um tão imenso culto da Liberdade, da Democracia e da Justiça – e às suas propostas e ações para a construção de um homem novo e de uma sociedade nova –, bem como a uma tão longa e dura viagem de luta contra o Estado Novo, não vejo outro Português com mais merecimento de ser lembrado nesta data(16). 3. Evocar o centenário da publicação do primeiro volume dos Ensaios (1920-2020) – sempre a luta pela Liberdade e pela Democracia, por um país melhor, pela educação do povo! Os Ensaios são uma das obras centrais da produção de Sérgio, e aquela em que o nosso autor mais marcou a cultura portuguesa. Foi também, talvez injustamente para outras obras menos conhecidas, a que mais repercussões teve e mais convulsão e ruído criou, bem como a que lhe deu notoriedade como ensaísta, género em que representa um dos maiores contributos em língua portuguesa. “Não excluir a possibilidade de estar sempre em engano, é o primeiro dever de todo verdadeiro ensaísta.” É este o mote do nosso autor! O próprio Sérgio afirma sobre o seu primeiro volume dos Ensaios, tratar-se de um “livro de pedagogia social e de política (e não de critica literária e estética)” (Prefácio da segunda edição). A obra desenvolve-se em oito volumes publicados entre 1920 e 1958(17). A primeira edição do primeiro volume dos Ensaios é de 1920 – comemora-se, portanto, este ano, o seu centenário – tratando-se de uma edição simultânea em Portugal e Brasil. Em Portugal a obra é editada pela Renascença Portuguesa, no Porto, e no Brasil pelo Annuário do Brasil, no Rio de Janeiro. Sérgio tinha 37 anos. O primeiro volume dos Ensaios tem uma repercussão tremenda na inteligência portuguesa. As críticas ferozes, os insultos, as vaias são altissonantes. As temáticas gerais do volume são as seguintes: Educação e Ciência; Educação e Filosofia; A Educação Cívica, a Liberdade e o Patriotismo, antigos e modernos; Da opinião pública e da competência em Democracia; e alguns textos que procuravam desmontar posturas nacionalistas e fascistas que alguns poetas da praça e intelectuais, por entre messianismos, sebastianismos e saudosismos, procuravam inculcar ao povo. O conteúdo deste primeiro volume dos Ensaios, como se pode ver, configura todo um programa Demopedagógico. É a concretização do apostolado cívico na educação do povo para o viver democrático. O Amigo Raul Proença carateriza o conteúdo deste primeiro volume dos Ensaios como meio “(…) para perfeita elucidação do nosso mal (…).” “Era preciso, absolutamente preciso, mostrar no homem mais representativo da mentalidade portuguesa [refere-se a Guerra Junqueiro] os nossos vícios mentais” que mais não são do que “a falta de equiponderação, de reflexão, de sobriedade, de disciplina mental, de domínio da inteligência crítica sobre as irrupções delirantes da fantasia.” E como se chega aqui? Que nação somos? Por onde vimos? Que nação queremos ser? (Ensaios, I) Estas perguntas são o ponto de partida de todo o pensamento Sergiano sobre Portugal e para Portugal. Já em 1913, António Sérgio, a partir do Rio de Janeiro, lançara uma série de quesitos “para iluminar, à luz da nova interpretação sociológica (e também económica, e também geográfica, e também cultural) múltiplos aspetos” que permitissem “responder à questão: quais as causas históricas do atrofiamento social e cultural do país e do seu persistente bloqueamento e isolamento face à Europa?”(18) Pretendia o nosso autor criar um Portugal de homens cultos. "Homem culto (…) significará um indivíduo de juízo crítico, afinado, objetivo, universalista, liberto das limitações de nacionalidade e de classe (…)“ (Ensaios, tomo VI, Lisboa, Sá da Costa). “Somos filósofos na proporção exata em que nos libertamos dos limites que nos inculcam a raça, a nacionalidade, o sítio, o instante, o culto, o temperamento, a classe, o sexo, a moda, a profissão.” (Vértice, n.º 30-35, maio de 1946). Toda as áreas que abarcou tiveram sempre como escopo dar resposta a estas questões e resolver os problemas da Grei, que considerava serem sobretudo educativos (inexistência de um povo culto por inexistência de um sistema educativo) e económicos (inexistência de um setor produtivo agrícola e industrial modernos). Afinal, porque lutava Sérgio? No contexto deste seu radical apostolado cívico propunha quatro revoluções: 1. A económica – pelo cooperativismo; 2. A filosófica – pela reflexão problemática a partir da ciência; 3. A historiográfica – pela introdução da problemática sociológica na maneira de escrever a nossa história; 4. A pedagógica – na escola, pela instrução ativa e de teor problemático, pela escola do trabalho e pelo self-government escolar. É muito difícil separar estes quatro intentos, de tal forma eles se ligam e entrecruzam em toda a sua obra. O primeiro volume dos Ensaios é obra fundamental – pedra angular – neste projeto (radical apostolado cívico) sergiano de construção do sonho de um país melhor pela educação do povo (reforma das mentalidades) e pela construção de um país livre, mais culto, desenvolvido e justo. É fundamental voltar aos textos de Sérgio(19). É por isso indispensável dar visibilidade a este centenário de uma obra crucial para, enquanto nação, compreendermos por onde vimos, quem fomos, quem somos e quem queremos ser! Volvidos cem anos da publicação do primeiro volume dos Ensaios e quarenta e seis anos do 25 de abril de 1974, será que, como questionou Raul Proença, já alcançamos descortinar a “perfeita elucidação do nosso mal”? (1) Dedicatória inspirada naquela que deixou Sérgio ao seu desafortunado amigo Raul Proença – mais uma vítima, entre tantas outras, do “reino cadaveroso” –, na segunda edição do primeiro volume dos Ensaios (Atlântida, Coimbra, 1949).
(2) Democrata, Autor, Filósofo, Tradutor, Pedagogo, Político, Jornalista, Ensaísta, Critico Literário, Historiógrafo e Historiador, Cooperativista, Enciclopedista, Editor, Autor de Literatura Infantil. (3) Conservada na Casa António Sérgio, na Travessa Moinho de Vento, n.º 4, à Lapa, em Lisboa. (4) Para quem pretenda aprofundar a vertente biográfica, aconselho um pequeno opúsculo, recentemente editado, da autoria de um Sergiano profundamente conhecedor da vida e obra do autor, João Salazar Leite (António Sérgio, Breves Percurso e Herança, CASES, 2018). (5) A ideação sergiana (a filosofia de Sérgio), que dá substrato teórico ao seu radical apostolado cívico – único contributo sério no contexto da filosofia portuguesa – carateriza-se como um racionalismo (na esteira de Platão, Descartes e Kant) de método. Esse método consiste na análise clarificadora e no exame crítico pelo intelecto, com o objetivo da Unificação (Lei da Unidade – razão enquanto ideal de harmonia unificadora e enquanto instrumento/ferramenta para essa unificação). Sérgio defende a universal possibilidade de penetração das coisas pela lucidez mental. A sua ideação é, portanto, de pendor idealista. Entende as coisas enquanto duplo acontecer: (i) um acontecer físico (admite-se o input sensorial mas sem acesso à coisa em si); (ii) um acontecer mental (“Só existe o mundo interior”). Trata-se de uma ideação com densidade epistemológica de raiz filosófica, associada a uma ideação-ação por via de uma singular postura de teórico-prático, de resto já notada no excerto citado acima da autoria de João Príncipe. Toda a sua atividade intelectual assenta em postulados filosóficos (epistemológicos e éticos) onde as ideias de CONHECIMENTO, BEM, LIBERDADE e DEMOCRACIA representam um conglomerado teórico estruturante. (6) Aconselho, a propósito desta detenção, a leitura da obra de Jacinto Baptista Disse chamar-se António Sérgio de Sousa – Auto da prisão, inquirição e desterro do autor dos Ensaios em 1935, Caminho, 1992. (7) Polemiza com Pascoaes (Sobre a saudade e o saudosismo, A Águia, 1913-14); com Bento de Jesus Caraça (Sobre a natureza e o valor da ciência, Vértice, 1945-46); com Jofre Amaral Dias (Neorrealista - Marxista - Sobre o conceito de cultura. A esse propósito discutem também sobre a fundamentação da vontade geral – Utilitarista ou Metafísica?, Sol Nascente); com Jaime Cortesão (sobre as teses historicistas de Cortesão, A Vida Portuguesa); com Carlos Malheiro Dias (sobre o desejado – D. Sebastião); Com J. Maria Rodrigues e António Lopes Vieira, sobre Camões; com Sant’Anna Dionísio, Abel Salazar, J. Gaspar Simões, A. José Saraiva, José Marinho, Guerra Junqueiro, António Nobre, Cabral de Moncada e outros. (8) Sérgio também foi influenciado pelas obras de William R. George, The Junior Republic; Georg Kerschensteiner, Education for Citizenship; e, entre outros, Ferrière, Montessori e Decroly. (9) António e Luísa Sérgio conviviam com estas personalidades não apenas nos espaços de formação; eram visitas de casa aos fins de semana. (10) “Os remédios são, evidentemente, uma escola do trabalho e da autonomia, do labor profissional e da iniciativa – uma escola útil para a vida: é essa mesma que vos proponho.” (11) «O que importa, repito, não é a quantidade do que o professor diz, mas a qualidade do que o aluno ganha; não o programa que sai da cabeça do professor ou do legislador, senão o que entra e toma vida no espírito do educando.» (12) Autobiografia inédita de António Sérgio, escrita aos 32 anos no Livre D’Or do Instituto Jean Jacques Rousseau. (13) João Salazar Leite, como muita propriedade – como é caraterístico do seu trabalho intelectual –, vem aportar na sua obra António Sérgio – Breves Percurso e Herança (CASES, 2018), algumas evidências de que já em período anterior ao exílio de Paris, Sérgio conheceria, pelos menos, a obra de Gide. De qualquer forma, é seguramente no período desse exílio que aprofunda esta temática, tanto mais que é após o seu regresso a Portugal que começa a sua faina cooperativista. (14) “Razão, irmã do amor e da justiça… e é por ti que a virtude prevalece…” Antero de Quental. Sobre esta frase, comenta Sérgio, esclarecendo o sentido que lhe atribui: “quando as tendências virtuosas, na vida psíquica de um indivíduo qualquer, logram prevalecer contra as paixões viciosas, a prevalência se deve ao racional – àquilo que no indivíduo é a razão prática, descoberta por Sócrates.” (Educação e Filosofia – Princípios de uma pedagogia qualitativa de ação social e racional.” Ensaios, Vol. I. (15) Foram inúmeros os discípulos de Sérgio – e por isso importantíssima a sua influência em sucessivas gerações. Desde o grupo de estudantes de ciências, ao qual escreveu as Cartas de Problemática (obra importantíssima, em conjunto com a Monarquia Agrária, para compreender o substrato epistemológico de todo o pensamento do nosso autor), até ao grupo com quem fundou o Boletim Cooperativista. Agostinho da Silva, em Paris, tinha-o também como Mestre (Cfr. O Estranhíssimo Colosso – Uma biografia de Agostinho da Silva, António Cândido Franco, Quetzal, 2015, p.155-162 e 241-253. (16) Como afirma António Cândido Franco, Sérgio “sabia melhor do que ninguém que a revolução não era um fósforo, menos ainda uma pistola, mas um lento processo moral coletivo, ao longo de muitas gerações, que haveria curso irreversível nas apertadas fraturas da História, como os rios nos vales, à força de educação e consciência.” (O Estranhíssimo Colosso – Uma biografia de Agostinho da Silva, Quetzal, 2015) (17) Deixo aqui as datas de publicação das primeiras edições dos oito volumes dos Ensaios: Volume I, 1920; Volume II, 1929; Volume III, 1932; Volume IV, 1934; Volume V, 1936; Volume VI, 1946; Volume VII, 1954; Volume VIII, 1958. Uma obra que, entre preparação e publicação, tomou mais de 38 anos de trabalho a António Sérgio. (18) Foi para tentar responder a esta questão que Sérgio se vira para a história. Sérgio e Cortesão procuram dados em diversas disciplinas (geografia, economia, sociologia e outras), e não apenas na própria história. A pluridisciplinaridade entra na historiografia portuguesa pela mão de Sérgio e Cortesão, neste contexto. (19) Os seus textos são caraterizados por lucidez acutilante, coerência extrema, criatividade, inovação, provocação (treinador de intelectos e não inculcador de “sabenças”), complexidade, cultura enciclopédica. Procura o favorecimento de uma postura mental autónoma e crítica, sem traumas e bloqueios dos que tiveram de lutar contra dogmatismos, para muitas vezes os substituírem por outros dogmatismos. Sérgio é um mediador cultural: as suas teses são ricas em consequências intelectuais; desenvolve em nós um método de pensar e de aprender autónoma e criticamente; fomenta uma atitude científica, crítica e problematizadora. Quando somos Sergianos, somo-lo de método e não de conteúdo ou doutrina. |