A IDEIA DE ECONOMIA SOCIAL NA SUA HISTORICIDADE
– UMA SÍNTESE Álvaro Garrido Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Investigador do CEIS20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . HISTÓRIA E HISTORICIDADE DA ECONOMIA SOCIAL
O uso historiográfico do conceito de Economia Social suscita na maioria dos historiadores, sejam eles especialistas em História económica, social ou política – mais nos primeiros do que nos segundos e terceiros – uma certa alergia. Talvez porque o conceito foi elaborado e difundido apenas no século XIX, as resistências são maiores nos historiadores da época moderna do que naqueles que se dedicam à história contemporânea. Esse pudor semântico e conceptual, demasiado apegado aos medos do anacronismo, parece-nos de todo injustificado, mas não deixa de ser significativo da falta de conhecimento e dos preconceitos que teimam em perturbar o entendimento da noção de Economia Social, as suas dinâmicas históricas e as próprias ambiguidades do conceito. Mais interessados no tema e nas múltiplas relações da Economia Social com os movimentos sociais e com as novas formas de solidariedade – não apenas caritativas ou filantrópicas –, alguns sociólogos entregam-se a lutas conceptuais sobre a noção de Economia Social e disputam os conceitos que lhe são concorrentes ou complementares (“economia solidária” e “terceiro sector”, entre outros), muitas vezes a partir de posicionamentos militantes. Sem surpresa, o campo científico da "Economia dos economistas" (Economics) tende a desprezar a Economia Social enquanto objecto e a empurrar o assunto para um espaço marginal de pesquisa e de produção científica, mais conotado com a Sociologia e, quando muito, com o Direito. Neste texto procuramos situar o conceito de Economia Social nas suas origens filosóficas e doutrinais prestando particular atenção aos compromissos que, desde o século XIX, ele estabeleceu com as ideias e movimentos sociais de sentido emancipatório e outras, menos progressistas, conservadoras ou mesmo contra-revolucionárias. Quando procuramos as suas origens doutrinárias – não apenas no campo das organizações ou das entidades que reúnem uma miríade de ideias e de práticas –, a Economia Social é composta por múltiplos veios, um rio imenso cujo caudal se alimenta de vários afluentes ideológicos e normativos, de certa maneira uma tradição de tradições. Também por isso, o conceito de Economia Social é, em si mesmo, uma construção histórica interessantíssima. Combina uma teoria ou uma doutrina de Sciencia Social e práticas sociais variadas, amiúde informais, em regra protagonizadas por organizações colectivas cujos princípios destacam os valores da cooperação e da solidariedade (DEMOUSTIER e ROUSSELIÊRE, 2004: 41). Esse património comum, claramente o mais transversal às diversas acepções de Economia Social, mas variável consoante os contextos históricos dos diversos países e regiões onde a Economia Social conheceu maiores adesões, reúne à partida dois grandes referentes doutrinários: o cooperativismo e o solidarismo, ideias e valores que historicamente estiveram ligados (BLAIS, 2007). Fortemente injuntiva, a expressão “Economia Social” implica toda uma história de ideias e carrega a sua própria historicidade, composta por vários tempos, contextos e sujeitos. O conceito nunca foi linear nem unívoco. Pelo contrário, foi sempre discutido e disputados os seus significados. Ontem como hoje, a ideia de Economia Social conhece diversas acepções e admite vários entendimentos. O facto de se tratar de uma ideia social e económica de certo modo alternativa, ou de uma doutrina social cujo significado se foi preenchendo através de uma negociação constante entre as palavras (doutrina e discurso jurídico) e as coisas (organizações e práticas sociais) empresta ao conceito de Economia Social uma densidade histórica mais do que suficiente para que o possamos tomar como categoria histórica. Embora a expressão seja compósita e redundante, porque na verdade toda a economia é social, o conceito aglutinador que traduz comporta em si mesmo uma relação dinâmica e historicamente verificável entre um sujeito (a ideia de uma “outra economia”) e um objecto (organizações e práticas sociais). Assim entendida, a Economia Social é um conceito dinâmico, em constante renovação, ainda que durante largos períodos tenha permanecido latente. Essa parcial invisibilidade da ideia de Economia Social, a sua natureza relativamente marginal face a outras propostas de organização da sociedade e da vida económica da era industrial, nunca deixou de ser uma evidência. Num outro contexto histórico, ainda hoje assim é, embora a questão se coloque, sobretudo, relativamente ao Estado e às instituições do Estado-providência democrático que, alegadamente, dispensa ou invisibiliza o papel das organizações identificadas com a Economia Social. Opinião corrente que, pelo menos no caso português, não é de todo verdadeira. ORIGENS E AFLUENTES No plano doutrinário, a expressão “Economia Social” nasceu em França nos anos trinta do século XIX, muito ligada a propostas de moralização da sociedade. Nasceu num contexto social e económico de acelerada mudança, num momento em que as elites aristocráticas e alguns sectores burgueses temiam que o corpo social fosse corrompido pela industrialização e pelos efeitos imprevisíveis do pauperismo (GUESLIN, 1998: 27-83). Em 1830, o economista francês Charles Dunoyer (1786-1862), numa apologia da concepção liberal do trabalho – a propalada “liberdade do trabalho” –, publica em Paris o seu Nouveau Traité d’Économie Sociale. Anos depois, o mesmo autor promove um curso de Economia Social na Universidade flamenga de Louvain cujo conteúdo se aproximava daquilo a que hoje podemos chamar “liberalismo social”. Apesar da crítica que os primeiros cultores da Economia Social dirigiram ao liberalismo económico, ou a uma Economia Política demasiado centrada na produção de riquezas (a crematística) e pouco atenta aos custos humanos e sociais da máquina e da “civilização industrial”, não se pode dizer que, nas suas origens, a Economia Social fosse uma doutrina progressista ou comprometida com a justiça social (HORNE, 2004: 41-49). A conjugação dos dois termos que compõem a expressão Economia Social nunca deixou de se prestar a entendimentos ambíguos e a manipulações convenientes. O facto de se tratar de uma filosofia moral, habitada por valores ético-morais que apontam para comunidades auto-organizadas que se declaram alternativas ao sistema capitalista, explica essas hesitações e quase autoriza o uso instrumental do conceito. Num plano apenas literal, a ideia de Economia Social é redundante, dado que toda a actividade económica ou qualquer forma de economia, por incipiente que seja, implica relações sociais e formas de poder, sendo certo que os próprios mercados são, como lembrou Karl Polanyi, instituições sociais que implicam relações de poder (POLANYI, 1944). Até aqui estaremos de acordo, apesar dos apelos sedutores que a economia mainstream, liberal ou neoliberal, nos dirige no sentido da negação da natureza social dos fenómenos económicos e, por inerência, no sentido da cooptação das organizações identificadas com a Economia Social para o domínio e a lógica mercantis. Historicamente, a Economia Social é uma ideia humanista e militante que nasceu da confluência entre propósitos de moralização do corpo social e de transformação progressista do sistema capitalista. Sob a égide da ideia de Economia Social, a partir de meados de Oitocentos numerosos grupos de trabalhadores, alguns patrões filantropos e comunidades de pessoas com riscos sociais comuns procuraram formas emancipadas de organização do trabalho e experiências de democracia económica. Muitas falharam por demasiado utópicas ou por serem desprovidas de base material, outras vingaram e tornaram-se lendárias. A tradição mutualista de determinados ofícios e actividades económicas e a sua ligação ao movimento sindical, a necessidade de associação de diversos corpos de funcionários públicos e, por último, a emergência doutrinária (e instrumental) de um solidarismo cristão muito empenhado em assumir-se como uma “terceira via” progressista para os dilemas da “questão social”, são os principais factores de afirmação da noção de Economia Social no grande pavilhão de ideias do século XIX. Essas dinâmicas de fundo foram comuns aos diversos países europeus, disputaram o seu espaço académico em múltiplas escolas e cursos de Direito, Economia Política e Sciencia Social, mas encontraram respostas variáveis nos diversos países e regiões, reflectindo a estrutura social e a vida económica das comunidades. Apesar da generosidade das suas próprias utopias, a Economia Social não pode ser apenas uma expressão conveniente e sobranceira, julgando que a sua natureza lendária e a dimensão ética que lhe está associada valem por si próprias. Essa evidência, hoje mais nítida do que nas últimas décadas, nomeadamente em Portugal, não diminui a necessidade de uma definição histórica do conjunto de ideias, organizações e práticas sociais que correspondem ao actual significado de Economia Social (NAMORADO, 2017; GARRIDO, 2016). A ideia de uma “economia nova”, ou alternativa, encerra um património admirável e lendário, que assenta em valores éticos de raiz humanista, de natureza democrática e solidária. Ainda assim – ou precisamente por isso –, as suas práticas e organizações estão sempre à prova. Historicamente, nos estatutos e na acção concreta das organizações identificadas com o actual conceito de Economia Social esses valores deram forma aos princípios de cooperação, autonomia, reciprocidade e solidariedade. A ideia de socialização do lucro — princípio e fim da empresa capitalista —, ou mesmo a sua recusa, bem como a cooperação para benefício de um território de pertença ou de uma dada comunidade, são traços salientes que afastam as organizações da Economia Social do sistema e do espírito capitalistas, ainda que actuem no âmbito dele. Embora os seus membros e beneficiários também tenham estabelecido alianças com o socialismo revolucionário (SINGER, 2018: 23-35), no seu percurso histórico a Economia Social mostrou‑se especialmente empenhada no reformismo social — progressista ou conservador, laico ou cristão, mais cooperativo ou mutualista. O saldo histórico da Economia Social demonstra que os seus protagonistas e organizações foram muito activos nessa “invenção do social” (DONZELOT, 1994: 125-140) e na construção de experiências de democracia económica que continuam a ter no modelo dos pioneiros de Rochdale a sua referência mais inspiradora e lendária (HOLYOAKE, 2017). Em França, o berço do conceito de Economia Social que se afirmou e institucionalizou em finais do século XIX, distinguem-se duas tendências contraditórias no movimento associativo: enquanto o ideal republicano herdado da Revolução Francesa recusava qualquer mediação entre os indivíduos e o Estado, as ideologias e correntes anti-individualistas reconheciam a importância dos corpos sociais intermédios, posição que coincidiu – nalguns casos convergiu – com a doutrina corporativista de raiz católica e que convergiu com diversos organicismos (KAPLAN e MINARD, 2004: 5-34). Já na Grã-Bretanha, as ideias que Marx havia de designar de “socialismo utópico” fizeram nascer inúmeras experiências cooperativas e de tipo mutualista nas quais a lógica de comunidade era vista como a melhor forma de responder a necessidades específicas e de promover relações sociais coesas (HARDY, 1979: 20-21). Composta por diversos afluentes ideológicos e por um leque de organizações que, ao longo do tempo, pouco convergiram entre si, a Economia Social não deixa de expressar denominadores comuns que intersectam a sua diversidade doutrinária e organizativa. Além da natureza auto-organizada, voluntária e tendencialmente democrática das suas organizações, em especial as do campo associativo e cooperativo, nos séculos XIX e XX a Economia Social ergueu‑se fundamentalmente contra os excessos do capitalismo liberal. As práticas associativas operárias foram, muitas vezes, formas de emancipação política que alimentaram movimentos sociais de grande impacto, ainda que indirecto. Nos países europeus que conheceram os primeiros ensaios de Estado-providência (ESPING-ANDERSEN, 1990), a institucionalização de seguros obrigatórios contra riscos sociais que eram próprios da era industrial, processo legislativo iniciado na Alemanha de Bismarck nos anos oitenta do século XIX, despertou alguma hostilidade relativamente à acção voluntária das mutualidades, cooperativas e pequenas caixas de seguro social. A viragem de Oitocentos para o século XX é um momento decisivo de tensão entre as dinâmicas voluntárias e associativas conotadas com a Economia Social, ou assim declaradas garbosamente, e a institucionalização dos seguros sociais obrigatórios, em especial na área dos acidentes de trabalho (MOSES, 2018: 18-36). “País de industrialização tardia”, como tantas vezes repetiu a historiografia dos anos oitenta e noventa do século passado, em Portugal essa tensão também existiu e deixou marcas salientes durante a República que vigorou de 1910 a 1926 (PEREIRA, 1999). Apesar da sua expressão ideológica variada e de ter encontrado no cooperativismo socialista o seu expoente ético, jurídico e organizacional — talvez o seu modelo mais alternativo ao capitalismo —, a Economia Social nunca se limitou ao campo dos socialismos. Todavia, importa advertir que quando se apresenta apegada aos seus mitos fundacionais, acaba por negar o seu carácter experimental, contingente e diverso, correndo o risco de desbaratar a sua lendária resistência e o sentido alternativo dos seus valores e práticas. Também por isso, ou essencialmente por isso, importa conhecê‑la na sua historicidade, isto é, no seu tempo e nos múltiplos contextos de interacção que estabeleceu dentro do sistema capitalista, isto é, em plena coabitação com o Estado e com o mercado (LAVILLE, 2018: 83-100). A história da Economia Social e as raízes socioculturais das entidades que hoje a compõem remontam a modos ancestrais de associação humana onde já se vislumbram formas auto-organizadas de vida económica de natureza reciprocitária e práticas de assistência e de seguro colectivo criadas para prevenir riscos sociais elementares. Contudo, nessa longa viagem histórica à descoberta de si própria, beneficiando da adaptabilidade que sempre manifestou diante de contextos económico-sociais em transformação, a Economia Social só adquiriu uma expressão organizativa contundente e um significado preciso quando o Estado outorgou a liberdade de associação (GUESLIN, 1998: 17-34). Quando tal aconteceu em diversos países europeus, em finais do século XIX e no mesmo contexto em que surgiram os seguros sociais obrigatórios de iniciativa estatal, a definição da Economia Social e a sua afirmação no grande pavilhão de ideias do novo século não resultaram tanto da proclamação doutrinária de grandes pensadores, como da acção concreta das organizações que no terreno se multiplicavam – associações de diversa natureza, mutualidades e cooperativas, o tríptico fundamental. Nos tempos medievais encontram-se inúmeras organizações nas quais o uso da técnica dos seguros mútuos e de outras formas de socialização dos riscos já era muito evidente. Religiosas ou laicas, essas práticas corporativas e comunitárias eram de natureza associativa e comunitária, mas não primavam pela liberdade de associação, antes se filiavam na rigidez hierárquica da ordem feudal. A limitação das liberdades do trabalho e a sua submissão aos poderes senhoriais eram os traços comuns. Na sua busca incessante de origens lendárias (e puras) para a Economia Social, muitos doutrinadores e dirigentes costumam abusar desse exercício filogenético. Na verdade, boa parte da tradição mutualista medieval insere-se melhor na história do corporativismo do que no percurso histórico da Economia Social, ainda que entre as duas doutrinas haja mais afinidades teóricas e práticas do que parece. No entanto, há uma diferença fundamental entre uma e outra: o corporativismo dos séculos XIX e XX é uma ideia funcional e contra-revolucionária que, nas suas diversas versões históricas, nunca deixou de eleger como prioridade a limitação da liberdade do trabalho (KAPLAN E MINARD, 2004: 27-34). São mais progressistas e humanos os fins da Economia Social, salvo no breve período em que se confundiu com a sociologia católica, moralista e reaccionária de Fréderic Le Play e seus pares, dos anos quarenta até aos anos oitenta/noventa do século XIX, apesar da coexistência de concepções e práticas concorrentes que eram então menos visíveis no espaço público. O testemunho mais eloquente desse entendimento conservador e tradicionalista da Economia Social encontra-se no pavilhão que lhe foi dedicado na Exposição Universal de Paris, em 1867, de que foi comissário o próprio Le Play, um engenheiro metalúrgico pioneiro da “Sciencia Social” (HORNE, 2004: 28-31) cujas ideias acabariam por ser recuperadas por diversos regimes autoritários de base católica, a exemplo do salazarismo. Longe de entender a Economia Social como um conjunto de práticas de protecção social geradoras de progresso social e equidade, Le Play entendi-a como ciência normativa e moralista; enquanto dispositivo de manutenção de uma ordem social contra-revolucionária destinada a conter a disrupção dos costumes das classes laboriosas e a evitar que se entregassem a pregações revolucionárias. No campo das organizações e das práticas, não tanto da doutrina, já antes do século XIX havia movimentos interessantes e mais tarde identificados com o conceito de Economia Social. Na Inglaterra da segunda metade do século XVIII, a multiplicação das Friendly Societies, que depressa floresceram nos Estados Unidos, na Austrália e mesmo na Nova Zelândia, já denunciava um movimento emancipador da sociedade civil cuja aspiração concreta residia nos seguros sociais. No plano das organizações e por aquilo que as Friendly Societies contribuíram para o crescimento e afirmação do movimento mutualista, talvez sejam elas as origens mais evidentes da Economia Social moderna, juntamente com uma série de micro-organizações mutualistas que assentam numa lógica de socialização dos riscos. Ao lado das antigas instituições de caridade, apareceram também as academias e as sociedades recreativas e de instrução, bem como numerosas associações liberais, muitas delas clandestinas, ligadas à Maçonaria. A história destes movimentos paralelos tem grande expressão na historiografia e conhecem-se bem as suas linhas gerais. Abolido o Antigo Regime, o individualismo liberal, de raiz iluminista, e a razão soberana do Estado, com raízes na Época Moderna, depressa se confrontaram com o vazio de representação dos corpos intermédios e das organizações de trabalhadores que reclamavam liberdade de associação. Os excessos de 1791, em particular a proibição das corporações profissionais definida pela lei Le Chapelier, assente na ideia revolucionária de defender o cidadão, as liberdades individuais e a propriedade livre, acabaram por limitar severamente o acesso ao trabalho e por criar um grande vazio nas sociabilidades laborais (KAPLAN E MINARD, 2004: 5-34). Paradoxalmente, em França e noutros países que conheceram revoluções liberais que abriram caminho à estatização da solidariedade social, o centralismo do Estado e a sua recusa em reconhecer corpos sociais intermédios acabaram por estimular o crescimento das associações socioprofissionais e dos sindicatos operários clandestinos. Agitando o fantasma do regresso clandestino das corporações de trabalhadores, quer o Código Penal francês de 1810, quer vários decretos publicados nos anos de 1830 e 1840, ilegalizaram as cooperativas e as mutualidades. Apesar das interdições à liberdade associativa impostas pelo liberalismo triunfante, na maioria dos países o capitalismo industrial despertou um forte movimento de criação de associações operárias, cooperativas de produção e consumo e sociedades de seguro mútuo. Todas se multiplicaram nas grandes cidades, junto das concentrações manufactureiras e dos núcleos urbanos de comerciantes e lojistas. No entanto, volvidas as revoluções liberais, depressa se percebeu que a impossibilidade de formar associações deixaria os indivíduos desarmados perante os patrões e as elites políticas burguesas (CASTEL, 1995: 48-64). Entretanto, a Revolução de 1848 e a insurreição popular da Comuna de Paris, em 1871, consentiram breves períodos de liberdade associativa. Mas só o espectro do marxismo e das revoluções proletárias havia de pressionar as monarquias liberais e repúblicas a reconhecerem a liberdade de associação e a oferecerem às organizações voluntárias de seguro social (cooperativas, pequenas mutualidades e outras associações) um quadro jurídico que lhes permitisse sobreviver. A associação voluntária e contratualizada de trabalhadores para enfrentarem riscos comuns abriu, assim, o campo das sociabilidades laborais e conduziu à reinvenção de corpos sociais intermédios. Em meados do século XIX, a previdência, os socorros mútuos e a própria instrução passaram a resultar, também, da associação de trabalhadores, de famílias e de outras associações. Protegidas pelo novo direito de associação, essas dinâmicas isentaram o Estado liberal de responsabilidades directas no campo da solidariedade social, excepto em contextos epidemiológicos que justificassem limitações da liberdade individual. Perante esse novo ambiente legal, um pouco por toda a Europa o Estado recuou da intervenção para a regulação e vigilância das organizações associativas. Na sua Memoir on Pauperism, editada em 1835, Alexis de Tocqueville procurou expor as circunstâncias concretas da pobreza, salientando a aparente contradição de haver em Inglaterra mais indigentes do que em Portugal, um país pobre. De acordo com o sociólogo francês, a indústria trouxera um novo padrão de pobreza, que se tornou muito comum nas sociedades avançadas ou que haviam conhecido mais cedo a industrialização. Segundo Tocqueville, o pauperismo era o fruto negro do advento industrial; a nova pobreza que expunha uma fracção cada vez maior de indivíduos às violências do mercado transformando em necessidades um número crescente de bens e serviços, anteriormente supérfluos. O “novo tipo de pobreza característico da modernidade” despertou o aparecimento de novas leituras do problema (ÁGOAS e NEVES, 2016: 27-28). Basicamente, essas propostas rejeitavam a identificação do pauperismo com a indigência e a mendicidade, vistas até então, nomeadamente pelo clérigo liberal Thomas Malthus, como condição natural ou sortilégio divino. Nos anos trinta e quarenta do século XIX, a invenção da Economia Social e a emergência da Sociologia inscrevem-se nesta viragem. A denúncia crescente das limitações da assistência oficial (laica e religiosa) e a pressão exercida sobre os poderes públicos para que assumissem alguma forma de reformismo social atestam a produção de conhecimento científico – no campo da Sociologia, sobretudo – empenhado em oferecer respostas concretas para o fenómeno do pauperismo e para a sorte dos excluídos. Esmagada pelo grande confronto entre liberalismo e socialismos, a ideia de Economia Social não conheceu uma genealogia histórica linear. Colheu ideias de ambos os lados e habitou, durante largos anos, um espaço marginal de crítica à Economia Política liberal, cujos principais autores pouco ou nada se preocupavam com a redistribuição e com as formas alternativas de produção de bens e serviços (GUESLIN, 1998; HORNE, 2004). No entanto, a própria Economia Social não esteve isenta de tentativas de cooptação e de disputa por parte dos intelectuais e práticos que buscavam uma sciencia social totalizante e moralista, obviamente conservadora. Por esse e por outros caminhos, as tentativas de superação do individualismo também abriram espaço a formas de “desassociação” (LAVILLE, 2018: 62). UMA CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA VARIADA E PLURAL O pluralismo ideológico das doutrinas e organizações que confluíram na noção de Economia Social, tal como ela se declarou e afirmou em finais do século XIX através da acção carismática de Charles Gide e do papel socializador da grande Exposição Universal de Paris de 1900, é a principal característica de um percurso dialéctico (DEMOUSTIER, 2003: 20-64). Embora cheio de descontinuidades e tensões, esse trajecto histórico afirmou princípios comuns que ainda hoje são pujantes e que encontram tradução nos ordenamentos jurídicos da Economia Social, nomeadamente em Portugal. O socialismo associativo (associationniste, na expressão francesa) foi o primeiro afluente da Economia Social, tal como ela se construiu e sedimentou na viragem do século XIX para o século XX. Na década de quarenta de Oitocentos, os franceses Constantin Pecqueur e François Vidal deram sequência às utopias socialistas de Saint-Simon, Fourier, Proudhon e Buchez e empregaram a expressão “Economia Social” (GUESLIN, 1998: 27-83). Reclamavam já uma ciência económica capaz de incluir a redistribuição e de fazer frente aos problemas sociais através da associação de trabalhadores, condição fundamental da sua organização colectiva. No contexto da revolução de 1848, esses e outros pensadores não recusaram que o papel das associações fosse articulado com a intervenção reformista do Estado sobre os problemas sociais. De forma mais sofisticada, no seu manual de Economia Social editado em 1883, Benoît Malon deu sequência a esta linha de socialismo associativista, mais tarde também subscrita por Marcel Mauss, cuja ideia de uma economia assente em socializações voluntárias (a teoria do dom) demorou a ser reconhecida (GODBOUT, 1996). Associacionistas célebres como Philippe Buchez (1796-1865) e o seu principal seguidor, o jurista alsaciano Auguste Ott (1814-1903), tal como o jornalista republicano Louis Blanc (1811-1882), defenderam a ideia de associação dos trabalhadores como garantia do direito ao trabalho. Esta vinculação do movimento associativo a direitos laborais embrionários era, também, uma forma de denúncia dos efeitos violentos da concorrência de mercado liberal e uma protecção básica contra o pauperismo (DEMOUSTIER e ROUSSELIÈRE, 2004: 7). A influência dos associativistas franceses junto do movimento operário internacional foi intensa na década de setenta do século XIX, mas parece ter criado uma identificação abusiva, talvez demasiado redutora, entre socialismo e Economia Social. Essas articulações foram menos exaltadas na sua própria época do que pela historiografia posterior, nomeadamente pela historiografia marxista do movimento operário do século XIX. Apesar da simpatia inicial de Marx pelas cooperativas de produção, não tardou que as teses colectivistas vissem na Economia Social um mero expediente de protecção social e de educação dos mais pobres e, quando muito, um instrumento do combate político revolucionário (DEFOURNY e NYSSENS, 2017: 34). Na verdade, Marx não reconheceu importância ao cooperativismo de consumo e via nas cooperativas de produção a prova do carácter supérfluo do proprietário capitalista. Para Marx e Engels, o cooperativismo não era mais do que uma etapa intermédia, ainda que necessária, na transição histórica para uma economia e sociedade comunistas. Marx entendia que os esforços cooperativos, pelo facto de resultarem de iniciativas dispersas de operários, não eram capazes de emancipar as massas e libertá-las da pobreza. Segundo Marx e os marxistas de várias gerações, as cooperativas eram micro-organizações onde imperava uma produção socializada, mas que não deixavam de actuar no âmbito da economia capitalista (CLAEYS, 2011: 521-537). Daí o divórcio histórico entre os socialismos revolucionários e as principais correntes que alimentaram a ideia e as organizações de Economia Social, nomeadamente no âmbito do sector cooperativo e das suas organizações internacionais. Não sendo um sinónimo doutrinal do socialismo associativo, o socialismo cristão teve, também, grande importância no impulso que deu ao fenómeno cooperativo, em especial no arranque da Aliança Cooperativa Internacional. Embora se possa questionar a autenticidade do socialismo cristão na defesa dos interesses dos trabalhadores – de um aggiornamento anti-revolucionário se tratou, na maioria dos casos – é certo que um dos pilares do movimento operário foi o cooperativismo, cujo principal afluente de ideias reside, por sua vez, no socialismo cristão. O próprio pensamento liberal não ficou completamente à margem do debate social nem das dinâmicas associativas que alimentaram a Economia Social. Apesar das suas ambiguidades, o liberalismo social teve uma expressão importante nas disputas ideológicas e práticas em torno do pauperismo e de outros tópicos centrais da “questão social”. No entanto, as demais propostas que alimentaram a ideia de Economia Social escolheram o liberalismo individualista e burguês como alvo favorito das suas críticas. O filósofo e economista inglês John Stuart Mill (1806-1873) foi, com certeza, o mais célebre dos pensadores liberais que se interessaram pela Economia Social. Em especial, se atendermos às suas concepções utilitaristas sobre o altruísmo e se lembrarmos as suas considerações de Economia Política acerca da distribuição social da riqueza. Sem colocar em causa a concorrência e as leis de mercado, Stuart Mill elogiou o papel das cooperativas chegando a propor um “socialismo descentralizado”, modelo equivalente a um socialismo cooperativo (LÉGÉ, 2006: 167-185). Descontando as variedades desta corrente de pensamento, é fácil notar que, para os adeptos do liberalismo social, a liberdade económica implica uma certa auto-organização social. Os franceses Charles Dunoyer e Frédéric Passy foram bons apóstolos do liberalismo económico e da Economia Social, ao mesmo tempo e sem aparente contradição. Noutro plano, destacou-se o economista suíço Léon Walras, dada a importância que atribuiu às associações populares, bem como o alemão Schulze-Delitzsch e o italiano Luzatti, pelo papel que tiveram na emergência das cooperativas de crédito e na sua difusão no espaço europeu (GUESLIN, 1998: 118-189). O cristianismo social foi outro dos principais afluentes teóricos da Economia Social, seguramente um dos mais importantes (GUESLIN, 1998: 104-108). Sobretudo na sua versão católica e conservadora, cujo principal doutrinador foi Frédéric Le Play, já invocado neste texto. Defensor de uma moral social rectificadora da pobreza, capaz de dar combate à miséria social, Le Play foi um divulgador bem-sucedido da Economia Social, expressão que o próprio consagrou ao fundar, em 1856, uma sociedade de estudos de Economia Social e uma revista com o mesmo fim. Baseados na observação directa, os inquéritos sociais de Le Play tiveram uma importância fundamental para o conhecimento das condições sociais dos trabalhadores. O sociólogo católico não negava o papel reformista das cooperativas, mas preferia o incentivo do papel filantrópico dos patrões católicos e das velhas instituições de caridade cristã. Não por acaso, as correntes autoritárias de corporativismo social acabaram por adoptar a sociologia de Le Play. Nos Estados alemães, fora do campo católico, mas debaixo de uma doutrina igualmente conservadora da ordem social, destacaram-se as experiências cooperativas e mutualistas de Raiffeisen. Na Prússia, fundou as primeiras caixas cooperativas de crédito rural, instituições que depressa se difundiram e cuja fama chegou a diversas partes da Europa (GUESLIN, 1998: 97-100). Essas caixas e cooperativas agrícolas deram resposta às necessidades de pequenos produtores atingidos pela grande crise europeia (1873-1895), que se viram desprovidos de meios para realizar uma agricultura extensiva. Entretanto, de forma mais explícita, a própria Igreja Católica e a política eclesiástica romana posicionaram-se de forma contundente perante a “questão social”. O encorajamento de uma certa ideia de Economia Social por parte dos “papas sociais”, em especial por Leão XIII na célebre encíclica Rerum Novarum, de 1891, empurrou a Igreja Católica para o combate político e aproximou a doutrina social romana das correntes organicistas e contra-revolucionárias que tiveram o seu expoente no corporativismo autoritário. Nas encíclicas papais e na propaganda social católica ganhou evidência a exprobação violenta dos grandes defeitos do liberalismo (o isolamento do indivíduo) e do jacobinismo revolucionário (a anulação do indivíduo pelo Estado), respectivamente (KAPLAN E MINARD, 2004: 22-31). Para os católicos sociais seria necessário superar uma e outra via por meio de uma recristianização da sociedade. Tal caminho implicaria o restabelecimento de corpos sociais intermédios e assumir um princípio de subsidiariedade entre a acção social do Estado e as obras sociais católicas, incluindo os sindicatos de trabalhadores, cuja actividade deveria ser inserida no campo mais vasto da acção católica. A GÉNESE DA ECONOMIA SOCIAL MODERNA Apesar de todos os demais afluentes doutrinários e da diversidade de experiências que é possível inventariar até finais do século XIX, o solidarismo foi o principal afluente da Economia Social no período histórico em que ela se declarou como “economia nova” e mais se afirmou no plano internacional. O solidarismo deu uma expressão mais progressista ao discurso doutrinal do cristianismo social, mas dele rejeitou o sentido conservador e o moralismo conservador dos autores católicos (BLAIS, 2007). Os franceses August Ott, discípulo do socialista Buchez, e Charles Gide (1847-1932)(1), o fundador da Economia Social moderna, foram longe nas suas propostas cooperativas de democracia económica; ambos entendiam que a socialização educativa das práticas associativas e cooperativistas deveria garantir a renovação social. Charles Gide celebrizou-se pelo modo como inscreveu no espaço público europeu o conceito e as virtualidades práticas da Economia Social e pelo impulso que deu ao cooperativismo socialista de base cristã (HORNE, 2004: 89-97). O solidarismo social-protestante de Gide e da sua Escola de Nîmes, criada em 1895, assumiu a utopia de abolir o capitalismo e o próprio trabalho assalariado por meio da cooperação, mas sem sacrificar a propriedade privada nem as liberdades conquistadas com a Revolução Francesa. Charles Gide abriu assim uma via reformista que conduziu a Economia Social a compromissos crescentes com as democracias liberais e a uma institucionalização crescente. Se o socialismo associativista privilegiara as cooperativas de produção, Gide viu nas cooperativas de consumo e no exemplo britânico de Rochdale o motor de uma transformação social gradualmente revolucionária. No arranque da Aliança Cooperativa Internacional, as ideias cooperativistas radicadas no cristianismo social foram importantes, mas também o foram as práticas de Rochdale e outras experiências históricas de cooperação. Assumidamente reformista, a subcorrente laica e republicana do solidarismo, onde se destacou o internacionalista Léon Bourgeois, pressionou muito as monarquias liberais e a comunidade internacional a adoptarem leis sociais reformistas, bem como os princípios mutualistas e cooperativos, como as formas mais elevadas de construção do “progresso social”. Essa pressão reformista dos cultores da nova Economia Social também ajudou a nascer o Direito Social, a base constitutiva dos futuros Estados-Providência (DONZELOT, 2003: 125-140). Na segunda metade do século XIX, em particular depois da edição de O Capital, de Karl Marx (1867-1894), e dos Elementos de Economia Política Pura, de Léon Walras (1874), a expressão “economia social” já adquirira outros significados. Até aí designava qualquer actividade de produção que funcionasse de modo diferente da que fora descrita pelos economistas clássicos. Depois de Marx e Walras, a Economia Social manteve o seu horror à Economia Política liberal, mas começou a definir um campo próprio e métodos adaptados ao estudo de sub-conjuntos de actividades produtivas e outras, num claro contraste com o sistema de regras consagrado na “Economia dos economistas”. Apesar dessa clivagem doutrinária e normativa, foram numerosas as reflexões da Economia Política em torno de temas como o valor do trabalho, o regime de propriedade e a organização das forças produtivas, debates que incluíram argumentos teóricos sobre a Economia Social, mesmo quando omitiram a expressão. Em finais do século XIX, os solidaristas compunham uma corrente muito expressiva, bem conhecida nos debates intelectuais sobre a “questão social”. Os doutrinadores e publicistas que assim se definiam, em especial aqueles que abraçaram as soluções cooperativas, colocaram o reformismo social em novos termos e propuseram novas formas de organização. O solidarismo não deixou de ser uma forma aperfeiçoada e mais republicana de associacionismo (CASTEL, 2012: 432-444). Mas é certo que os solidaristas cooperativistas foram muito além da ideia de associação e das respectivas práticas. O princípio da cooperação voluntária passava a ser a chave da transformação radical, pacífica e global das relações entre os homens. A cooperação deveria constituir o código ético das organizações dedicadas ao progresso social. Charles Gide acreditava que a missão histórica e reformista dessas organizações da nova Economia Social, doutrina finalmente liberta do moralismo católico reaccionário, haviam de opor-se aos monopólios constituintes do “regime económico” que vinha da Economia Política liberal. No seu relatório da célebre exposição universal de 1900, Gide definiu incisivamente as finalidades das “instituições do progresso social”: melhorar as condições de trabalho, buscar o conforto, garantir a segurança em relação ao futuro por meio da previdência; salvaguardar a independência económica do indivíduo e da sua família, mantendo ou criando propriedade individual (HORNE, 2004: 81-84). Essas instituições podiam ter diversos afluentes doutrinários, mas o solidarismo seria a grande doutrina da Economia Social. Historiador do pensamento económico empenhado em fundar uma Economia Política comprometida com o seu tempo histórico e social, Gide interpretou o espírito do solidarismo, anunciando uma “Economia nova” – a Economia Social. Sem recurso à violência revolucionária e evitando a expropriação, sem negar as liberdades da Revolução, mas sem abolir a propriedade privada, Gide acreditava numa progressiva extinção do sistema capitalista. Em seu entender, as práticas de ajuda mútua que haviam sido teorizadas pelos associacionistas e a defesa de uma educação económica perseverante que deveria ser confiada às cooperativas, seriam os factores decisivos do “progresso social” e da própria transformação humana. A Economia Social de Gide foi aquela que mais penetrou em Portugal, sobretudo através de António Sérgio, a partir dos anos vinte e trinta do século XX. Essa Economia Social moderna, fundamentalmente cooperativa, mas aberta a outras dinâmicas organizativas, era um corpus teórico distinto da linha social-cristã que a precedeu, dominada pelo pensamento de Le Play, e da Economia Política liberal na generalidade das suas ideias e autores (GARRIDO, 2016: 125-222). Entre os afluentes doutrinais e práticos que atestam o pluralismo da Economia Social resta a filantropia. A tradição filantrópica é transversal a diversas ideologias e grupos sociais. Embora a filantropia tenha nascido vinculada às ideias conciliadoras do liberalismo social e à visão paternalista dos grandes patrões da indústria que praticavam obras sociais de inspiração cristã ou laica, ela também se identifica com o interesse mútuo das classes populares em construírem, por elas próprias, respostas colectivas para necessidades e riscos sociais comuns (CASTEL, 2012: 416-429). Mais ancestrais e muito enraizadas nas sociedades cristãs são as obras de caridade dirigidas aos pobres e as associações laicas de beneficência. As segundas encontram na tradição britânica das charities e nas práticas de voluntariado em prol do bem-comum, muito frequentes nos países de cultura protestante e puritana. Cada corrente da Economia Social e cada uma das suas actuais entidades e organizações tem a sua história e o seu percurso. Apesar destes múltiplos afluentes doutrinários e da diversidade de práticas que comporta, a Economia Social também sabe invocar a sua unidade e ritualizar aquilo que nela é comum. Começou, aliás, por se afirmar dessa maneira e por competir com outras doutrinas económicas e sociais através do culto identitário e da simbolização unitária. A alegoria exibida por Charles Gide no pavilhão da Economia Social da Exposição Universal de Paris de 1900 comparava a “economia nova” a uma catedral (HORNE, 2004: 80-101). Na grande nave central exibiam-se todas as formas de livre associação destinadas a emancipar a classe trabalhadora pelos seus próprios meios, sem esquecer o chamado “socialismo utópico”; numa das alas laterais mostravam-se todas as formas de intervenção do Estado na “questão social”; na outra ala do templo representavam-se todas as modalidades de protecção social promovidas pelos patrões. Em baixo, na cripta, uma visão do “inferno social”: o pauperismo, o alcoolismo, o analfabetismo e outras evidências de miséria social da era industrial. No entendimento de Gide, a Economia Social era um conjunto, um espaço socioeconómico, que articulava as três dimensões em exposição e que não dispensava o reformismo social do próprio Estado numa lógica solidária de raiz cristã. O principal interesse de Gide eram as “instituições de progresso social” e o reformismo que podiam protagonizar. Para trás ficara o sincretismo moralista das primeiras formulações da Economia Social que, durante décadas, fora sobretudo um corrector de vícios e maleitas de um “corpo social” atingido por uma pobreza endémica. As “instituições de progresso social” incluíam as obras sociais do grande patronato – em acentuado declínio na viragem do século –, as associações (cooperativas, mutualidades e sindicatos de trabalhadores) e o direito social em emergência. Dotadas de uma identidade comum traduzida na ideia de Economia Social, expressão que já fora aplicada na Exposição Universal de 1867, essas organizações seriam os agentes fundamentais da previdência, da dignidade humana e da melhoria das condições de trabalho. Já então se declarava uma Economia Social que assumia a sua função complementar do papel previdente do Estado. A visão integradora de Gide não era, contudo, meramente social; a sua “república cooperativa” exprimia ideias de Economia Política inspiradas em Léon Walras e na sua crítica contundente às escolas liberal, socialista e histórica alemã. No entendimento de Gide e Walras, a Economia Social era uma “economia nova”, a ciência da repartição da riqueza, da justiça social e das relações humanas (DEMOUSTIER, 2003: 32-33). É a noção de “progresso social” – expressão muito mais comum na época do que a sucedânea de “justiça social” –, que dá corpo à Economia Social nascente. Era uma doutrina e uma prática que articulava o papel autónomo das associações livres, o reformismo social do Estado e a filantropia patronal. Na asserção lendária de Charles Gide, exaltava-se o socialismo associativo, mas afirmava-se a complementaridade do papel social das organizações voluntárias, privadas e auto-organizadas relativamente às funções sociais do Estado, uma invenção desta época. Havia, porém, um longo caminho a fazer. 1. Charles Gide estudou Direito em Paris antes de se tornar professor de Economia. Ensinou nas universidades de Bordéus, Montpellier e Paris. Socialista e cristão-protestante, na década de oitenta do século XIX participou activamente no movimento cooperativo francês. Defensor das cooperativas de consumo, entendia que elas eram uma escola de conhecimentos para a classe operária na medida em que a preparavam para aceder ao lugar a que teria direito na escala social. Em 1887, Gide criou a Revue d’économie politique de que foi chefe de redacção até ao fim da sua vida. Já no século XX, participou no movimento de criação de universidades populares e de 1921 a 1930 foi professor no Collège de France, em Paris, onde leccionou Economia Social, financiado pelo próprio movimento cooperativo. Referências bibliográficas
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