ECONOMIA SOCIAL EM PORTUGAL – UMA ENCRUZILHADA VIRTUOSA
Eduardo Graça Presidente da CASES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sexto número desta revista digital, que prossegue o seu caminho, é dedicado, predominantemente, aos instrumentos estatísticos que temos vindo pacientemente a construir, quer como atribuição legal da CASES, quer como parceiros do INE, a autoridade estatística nacional, em prol de um melhor e mais aprofundado conhecimento da economia social e do voluntariado em Portugal.
A Conta Satélite da Economia Social (CSES) atingiu a terceira edição, divulgada no passado mês de julho com dados de 2016, sucedendo às duas anteriores, editadas em 2013 e 2016 com dados, respetivamente, de 2010 e 2013, permitindo-nos alcançar uma meta que muitos julgavam mero desejo infundado ou supérfluo exercício sem préstimo. Aqui chegados, resta-nos projetar a continuidade da elaboração deste instrumento estatístico, consolidando a série que já se tornou realidade. Julgamos desejável encurtar o intervalo temporal entre contas, de três para dois anos, estudar mais aprofundadamente, com o INE, a metodologia adotada, melhorar o processo de definição do universo da economia social em Portugal, em parceria com as entidades representativas do setor, ajudar na conceção e viabilização de inquéritos ao voluntariado, promovendo o seu lançamento regular, assim como aos modelos de gestão das entidades que integram o setor, e criar novas estatísticas especificas do setor cooperativo, em colaboração com a OIT. Cabe-nos também construir a Base de Dados Permanente das Entidades da Economia Social, atribuição da CASES, que deverá ficar disponível, em formato experimental, mas com utilidade operacional, no decurso de 2020, constituindo-se, além de um alfobre de informação corrente acerca do setor, numa alavanca de relevante utilidade para a própria elaboração de próximas edições da Conta Satélite. Confrontamo-nos ainda com o facto de muitas entidades que integram o perímetro da economia social não se assumirem como entidades do setor, o que exige esforços redobrados em todas as frentes, desde o estimulo à produção de estudos, à promoção de novas formas de divulgação da sua realidade concreta, processos nos quais deverá ter importância decisiva a recém criada Confederação Portuguesa de Economia Social (CPES). A definição operacional de economia social adotada em Portugal é a que consta da proposta no relatório The Social Economy in the European Union:
A Economia Social agrupa também as entidades privadas organizadas formalmente, com autonomia de decisão e liberdade de adesão, que produzem serviços não mercantis para as famílias e cujos excedentes, quando existem, não podem ser apropriados pelos agentes económicos que os criam, controlam ou financiam.”
Nas Contas Satélite da Economia Social tem vindo a considerar-se ser esta definição a que melhor se adequa aos sistemas de Contabilidade Nacional, visto não ter em consideração nem critérios jurídicos, nem administrativos, centrando-se na análise do comportamento dos atores da Economia Social, assim como na procura de semelhanças e diferenças entre os próprios atores e entre estes e os outros agentes económicos. Tem ainda em consideração os princípios históricos, bem como os valores próprios da Economia Social. É, por conseguinte, uma definição que tem um amplo consenso científico e que permitiu quantificar e tornar visível, de forma homogénea e harmonizada internacionalmente, alguns agregados das entidades pertencentes à Economia Social. Tais asserções são tanto mais importantes quanto é certo coexistirem, nem sempre de forma harmoniosa, um pouco por todo o mundo, duas grandes conceções de economia social: a chamada conceção americana, circunscrevendo o perímetro das organizações da economia social às chamadas organizações sem fins lucrativos, nonprofit institutions (excluindo as cooperativas e mutualidades, as principais organizações do chamado “setor de mercado”); e a conceção europeia que, com mais ou menos variantes, por região ou país, estabelece um perímetro mais alargado, no qual são consideradas as organizações dos chamados “setor de mercado” e de “não mercado”. É esta conceção mais abrangente que foi adotada em Portugal com incidência nas reformas institucionais e legais, assim como nos demais instrumentos operacionais que têm vindo a ser criados. O “setor cooperativo e social” que a Constituição da República Portuguesa consagra no art.º 82ª como um dos três setores de propriedade dos meios de produção, com a mesma dignidade dos setores público e privado, nunca havia tomado corpo, na nossa contemporaneidade, até à criação da CPES, enquanto setor organizado em torno de uma qualquer organização associativa, nem sequer havia prosseguido, de forma estruturada e abrangente, objetivos comummente partilhados com o Estado. As cooperativas e as mutualidades, nascidas da mesma raiz, com uma história centenária, raramente haviam coabitado em espaços de trabalho e diálogo; as misericórdias, com uma tradição de cinco séculos de história, têm vindo a reconstruir um conglomerado social e económico, prosseguindo, legitimamente, o seu próprio caminho, estribadas no direito canónico; as instituições particulares de solidariedade social (IPSS s) têm assumido crescente protagonismo e importância, na área social, em torno de um estatuto que o estado lhes atribui, preenchidas determinadas condições, recaindo sobre organizações com diversos estatutos jurídicos; as associações, mais numerosas e diversificadas pela natureza das suas atribuições e objetivos, além de mais pulverizadas no território, têm exercitado um intenso espírito de sobrevivência. A importância da Lei de Bases da Economia Social (LBES), aprovada em 2013 por unanimidade na Assembleia da República, assumindo-se como uma lei geral, resulta do prosseguimento de um objetivo primordial que é o do reconhecimento institucional e jurídico explícito do setor da economia social, o qual passa fundamentalmente por: a) Delimitar o âmbito subjetivo das suas entidades e os princípios orientadores da respetiva atuação; b) Identificar as formas de organização e representação da economia social; c) Definir as linhas gerais das políticas de fomento da economia social; d) Identificar as vias de relacionamento das entidades da economia social com os poderes públicos. Neste contexto, o art.º 1º da LBES dispõe que
Neste novo edifício em construção, que conta com o contributo de todas e de todos os que entendem a importância estratégica da economia social para a coesão social numa perspetiva de melhoria e reforma do estado social, não esteve ausente a necessidade de criar um instrumento estatístico de forma a superar a falta de informação estatística credível, e certificada, do setor em Portugal.
A LBES portuguesa, antecedida pela aprovação de lei homóloga em Espanha, antecipou a iniciativa legislativa francesa (viveiro dos movimentos inaugurais da economia social) e a do Canadá (Quebeque), integrando no seu articulado (art.º 6º, nº 2) a obrigatoriedade da elaboração de uma Conta Satélite da Economia Social nos seguintes termos: “Deverá ainda ser assegurada a criação e a manutenção de uma conta satélite para a Economia Social, desenvolvida no âmbito do sistema estatístico nacional”. Tal consagração foi consensual em grande medida pelo fato da CASES ter suscitado, e incluído no seu plano de ação, logo em 2010, a criação de uma CSES correspondendo a um desafio contido em diversos documentos da União Europeia tal como, por exemplo, a Resolução do Parlamento Europeu de 19 de março de 2009, sobre Economia Social, publicada em 25 de março de 2010 em que, nos seus pontos 15 e 16 faz menção explicita ao “reconhecimento estatístico” nos seguintes termos: “15. Convida a Comissão e os Estados-Membros a apoiarem a criação de registos estatísticos nacionais das empresas da economia social, a estabelecer contas satélite nacionais por sector institucional e por ramo de atividade, e a permitir a utilização desses dados pelo Eurostat, recorrendo também às competências disponíveis nas universidades;” 16. Salienta que a medição da economia social é complementar à medição das organizações sem fins lucrativos (OSFL), convida a Comissão e os Estados-Membros a promoverem a utilização do Manual da ONU sobre as organizações sem fins lucrativos e a prepararem contas satélite que permitam melhorar a visibilidade das OSFL e das organizações da economia social.” A conceção, e criação, de tal instrumento estatístico competiria sempre à autoridade estatística nacional (Instituto Nacional de Estatística) que, desde logo, aderiu à proposta tendo sido celebrados protocolos entre as duas instituições (CASES e INE), desde 14 de abril de 2011, tendo em vista a concretização, em parceria, do projeto. De acordo com os dados CSES/2016, o setor da economia social revelou, assim, um crescimento significativo, quer em número de entidades, quer nas restantes variáveis mais relevantes. Numa breve síntese, o número de entidades que constitui o setor da economia social passou de mais de 55 mil em 2010 para mais de 61 mil em 2013, tendo evoluído para mais de 71 mil em 2016. A riqueza gerada (VAB) pelas Entidades de Economia Social (EES) passou de um peso de 2,8% na economia nacional em 2010 e 2013, para 3,0% em 2016. O emprego remunerado a tempo completo nas EES passou de um peso de 5,5% do total da economia em 2010, para 6,0% em 2013 e para 6,1% em 2016. As remunerações também registaram um incremento do seu peso na economia nacional, passando de 4,6% em 2010 para 5,2% e 5,3% em 2013 e 2016, respetivamente. A Economia Social em Portugal, salvo no que respeita ao investimento, cresceu acima do conjunto da economia, revelando uma vez mais ser um setor com elevado potencial na criação de emprego. Quanto às questões que se debatem nos centros de poder europeu, e global, interessam-nos, em particular, as que respeitam à definição de conceitos inovadores, como o de empresa social, que revela um surpreendente interesse, que emerge do debate acerca da confluência de valores e princípios diversos que, estrategicamente, poderão confluir num novo conceito de organização no qual o económico não capturará o social nem o social condicionará o económico. Outro grande desafio é o da intercooperação, ou seja, o de encontrar caminhos que promovam a prática da cooperação no seio próprio do movimento associativo, aglutinando energias na diversidade, densificando o debate, estimulando a academia, formando os gestores, entrosando os protagonistas, criando sinergias entre os mundos do saber e do fazer, tendo em vista a sua abertura à renovação de ideários sem perda na fidelidade a valores e princípios distintivos. Em Portugal será desejável que se prossiga e se aprofunde, sem abrandamento da parte de nenhum dos protagonistas, o trabalho pelo reconhecimento do sector e pelo tema da economia social em toda a sua extensão e complexidade. As organizações portuguesas da economia social têm de encarar os desafios do futurode forma positiva, ganhar escala em cada um dos seus subsetores, na eficiência e eficácia, adotando, sem prejuízo da fidelidade aos seus princípios, uma gestão profissional que lhes permita adotar, com sucesso, estratégias nas quais a sustentabilidade terá um papel cada vez mais relevante. É incontroverso que no seu conjunto a economia social constitui uma rede, densa e diversificada, implantada ao longo de todo o território nacional, constituindo-se como um poderoso movimento que gera emprego e coesão social, que cria riqueza e exerce um papel preponderante, real e potencial, no fomento da integração social e da regeneração de territórios que têm vindo a ser esvaziados de população e de equipamentos. Os desafios da economia social, no Portugal contemporâneo, têm de ser enquadrados num processo em movimento que está a decorrer com coerência após um longo período histórico de vazio no que respeita à reinvenção do conceito de economia social, com suas virtualidades e constrangimentos, quer no plano político, institucional, legal, doutrinário, económico ou social. |