O MUNDO DAS (M)PME E A IMPORTÂNCIA DO MICROCRÉDITO (TAMBÉM) NA CRISE PANDÉMICA
Mariana Baptista Responsável Técnica do Programa Nacional de Microcrédito António Curto Economista, ex-Coordenador do Programa Nacional de Microcrédito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . PME. “Pequenas e Médias Empresas”. Expressão que ouvimos e lemos com frequência nas notícias, nas assembleias parlamentares, na agenda política. Associamos normalmente esta expressão à economia, quando a mesma apresenta sinais de prosperidade e crescimento, mas também quando existem impactos fortes negativos, externos ou internos, como a mais recente crise pandémica, que infelizmente todos enfrentamos. Alguns de nós lutam contra a doença e a propagação da mesma, outros, para além dessa luta, travam ainda outra – preservar os rendimentos das suas famílias e evitar o encerramento das suas atividades profissionais e empresariais.
A verdade é que, após a necessidade de confinamento, não tardámos a perceber a gravidade das consequências dessa paragem na vida social e na economia. E essas consequências afetaram e continuam a afetar naturalmente com maior incidência as atividades económicas que dependem da normalidade do nosso dia-a-dia: cafés, restaurantes, turismo, serviços, etc. Estas atividades têm características e necessidades específicas, pela sua estrutura, dimensão, forma de gestão, tesouraria e rácios de capital, e estão bastante expostas às flutuações do rendimento das famílias e do poder de compra. Isto significa que, para as conseguirmos apoiar é necessário conhecê-las e compreendê-las, para que os apoios e incentivos criados correspondam às necessidades das mesmas. E é precisamente por aqui que devemos começar: Será que conhecemos as nossas empresas? Qual é a realidade das empresas portuguesas? Quem são afinal as PME? Quantas são? Que características têm? Quantas pessoas empregam? Qual o valor da riqueza que produzem? Ora, através da informação estatística disponibilizada pelo INE, é possível verificar que, em 2018, existiam 1.295.299 empresas em Portugal, com uma dimensão média de 3,21 pessoas ao serviço. Dessas empresas, vamos concentrar-nos nas não financeiras, que totalizavam 1.278.164, ou seja, 98,7% do total das empresas portuguesas, com uma dimensão média de 3,18 pessoas ao serviço. Destas, o conhecido mundo da expressão “PME” é constituído por 1.276.965, ou seja, 99,9% das empresas portuguesas não financeiras são pequenas e médias empresas. Exato, isto significa que as grandes empresas portuguesas representam apenas 0,1% do tecido empresarial em Portugal. Obviamente que estes dados não lhes retiram a importância que têm, fundamental na economia portuguesa (integram 21,4% do pessoal ao serviço e contribuem para 35,9% do VAB), mas dão-nos a possibilidade de compreender que, de facto, não são estas empresas que marcam o nosso tecido empresarial. Olhando agora mais detalhadamente para “dentro” das PME, e apesar de não referidas na terminologia, encontramos ainda outra realidade: 1.227.831 são microempresas, ou seja, em termos percentuais correspondem a 96,2% das PME e a 96,1% do total das empresas portuguesas não financeiras. Na verdade, apenas 3,8% das PME são “pequenas e médias empresas” (3,3% são pequenas e 0,5% são médias). Isto significa que nove em cada dez PME são microempresas, sendo a esmagadora maioria do nosso tecido empresarial constituído por empresas que não têm mais de 10 trabalhadores e que não excedem os 350.000€ de total de balanço e os 700.000€ de volume de negócios líquido (cfr. Decreto-Lei n.º 98/2015, de 2 de junho). Mais uma vez, isto significa que não são também nem as médias, nem as pequenas empresas que compõem, na sua maioria, o nosso tecido empresarial. São as microempresas. E esta realidade não é só portuguesa. De acordo com o EUROSTAT, em 2018, na União Europeia (UE) a grande maioria (93%) das PME eram também microempresas, 5,9% eram pequenas empresas e apenas 0,2% eram grandes empresas. Desagregando por países, Itália aparece em primeiro lugar, com maior peso de micro e pequenas empresas, seguindo-se Portugal, Espanha, Eslováquia e França. A Alemanha é o país da UE onde existe o maior número de grandes empresas, sendo que, ainda assim, estas representam apenas 0,5%. Voltando a Portugal, e de acordo com o INE, em 2018 as microempresas tinham uma dimensão média de 1,47 pessoas, empregando 44,6% do pessoal ao serviço, ou seja, em Portugal 4 em cada 10 pessoas trabalhavam em microempresas. O pessoal ao serviço nas microempresas chegou às 1.809.441 pessoas, enquanto nas grandes empresas totalizou os 867.111 empregados. Desta forma, verifica-se que as microempresas tendem a criar mais postos de trabalho do que as grandes empresas. Em termos de produção de riqueza, são responsáveis por 22,5% do VAB nacional do total das empresas portuguesas não financeiras. Na UE as microempresas também seguem esta tendência - para além de serem mais do que as pequenas e médias empresas (representam mais de 90% do setor empresarial), empregam mais pessoas (responsáveis por 29,1% do total de trabalhadores na UE) e geram mais riqueza. Na maioria dos Estados-membros o rácio é semelhante. No âmbito da celebração do “Dia das Micro, Pequenas e Médias Empresas”, que se assinala anualmente a 27 de junho, a Vice-Secretária-Geral da ONU referiu que estas empresas “são chave para criar os 600 milhões de empregos necessários até 2030, para acompanhar o ritmo do crescimento da população em idade ativa. É inequívoco o reconhecimento do seu impacto nas economias locais e globais e o seu papel impulsionador da redução da pobreza e do desenvolvimento”. A ONU refere ainda que, as microempresas tendem a empregar uma parte maior dos setores vulneráveis da força de trabalho, como mulheres, jovens e pessoas em risco de exclusão social, e podem, por vezes, ser a única fonte de emprego nas áreas rurais, sendo vitais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em particular na promoção de inovação, criatividade e trabalho decente para todos. É inequívoca a importância e o contributo destas empresas para o tecido económico e social. Ao conhecermos a realidade estatística sobre as mesmas, conseguimos retirar informação importante sobre as suas características e, a partir daí, compreender melhor as suas necessidades. E, neste sentido, estes dados alertam-nos também para uma realidade importante: a capacidade de sobrevivência destas empresas e as dificuldades que as mesmas enfrentam. A sua dimensão e informalidade pode torná-las mais vulneráveis às mudanças e a todo o enquadramento conjuntural, como a pandemia que atualmente atravessamos, sendo importante encontrar soluções viáveis e céleres para as apoiar. E estas soluções passam obviamente por instrumentos financeiros adequados às suas características, como as linhas de microcrédito, mas também por eventuais sistemas de incentivos (pois não as podemos deixar para trás no âmbito da inovação e sustentabilidade), pela simplificação do enquadramento jurídico-fiscal e pela criação de redes de consultoria e apoio técnico, por exemplo em conjunto com as associações empresariais, com competência e experiência para acompanhar estas empresas (pois as necessidades não só são financeiras, são também muitas vezes ligadas à gestão, à literacia financeira e à comunicação). No contexto de pandemia, raras não foram as vezes que ouvimos anunciar linhas de microcrédito, em conjugação com outras medidas e apoios à normalização da atividade empresarial. E isto acontece porque o microcrédito é naturalmente um instrumento financeiro de apoio às microempresas, seja destinado à tesouraria, ao investimento, à criação ou à consolidação das mesmas. É, por isso, fundamental criar condições que permitam o desenvolvimento sustentável do empreendedorismo, da inovação/digitalização e da internacionalização, quando e se a mesma fizer sentido. Democratizando o acesso ao microcrédito, e sensibilizando o Governo e a banca para esta dimensão da economia, estamos a apoiar diretamente as microempresas, aquelas que já existem e aquelas que ainda vão existir e potencialmente criar mais emprego, dando resposta a pessoas que têm vontade e perfil para criarem a sua iniciativa empresarial e que não conseguem ingressar no mercado de trabalho ou que procuram uma melhoria das suas condições de vida e do rendimento do seu agregado familiar. E é também preciso compreender que o apoio a estas empresas não se esgota no apoio às startups e às empresas de elevado crescimento e de base tecnológica. Apoiar esta dimensão empresarial também é de extrema importância, mas é importante ter consciência de que é uma realidade diferente da maioria das microempresas, que são criadas para criar autoemprego e o sustento das famílias e não têm uma natureza “escalável” ou “capitalizável”. É fundamental conhecer a realidade dos sócios-gerentes das microempresas e das atividades por conta própria, onde muitas vezes o dono é o próprio trabalhador e o rendimento familiar está diretamente relacionado com o rendimento líquido da atividade. A noção de lucros nestas empresas é, por isso, altamente relativa e variável. É igualmente importante que a banca compreenda o papel vital que tem para estas empresas e que desenvolva soluções financeiras compatíveis com as suas especificidades (evitando criar pacotes para “PME”, muitas vezes assentes nos modelos de viabilidade económico-financeira das grandes empresas), não alimentando ciclos de endividamento e dependências financeiras e sendo célere e pouco burocrática nas suas repostas. Assim, e como define Muhammad Yunus no seu Livro “O Banqueiro dos Pobres”, acreditamos que o microcrédito “não está relacionado com capital financeiro, mas com capital humano. O dinheiro é uma mera ferramenta que ajuda à realização dos sonhos, que ajuda as pessoas mais pobres e mais desafortunadas a ganhar dignidade, respeito e um sentido para as suas vidas.” |