n.18 // outubro 2022
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Ângela de Almeida
Investigadora
Researcher

NATÁLIA CORREIA E ANTÓNIO SÉRGIO:
RESISTÊNCIA, LIBERDADE, COOPERATIVISMO
NATÁLIA CORREIA AND ANTÓNIO SÉRGIO: RESISTANCE, FREEDOM, COOPERATIVISM​

Durante a ditadura do Estado Novo, Natália Correia e António Sérgio protagonizaram os principais eventos da resistência e da luta pela liberdade e pela defesa dos direitos humanos, numa relação de aluna-mestre, assumida, com imensa admiração, pela autora de Não Percas a Rosa: «António Sérgio não era um velho quando o conheci. Mas para a óptica das tenras idades, que era a minha, um senhor, que já ia nos sessenta, era para mim um exemplo ilustre de provectos conhecimentos.» (CORREIA, 2018:53)
 
Natália viera para Lisboa com a mãe, professora, em 1934. Ambas inauguraram um caminho de coragem e ousadia, enfrentando a PIDE, então criada em 1945, que as vigiava e perseguia regularmente, assim como à irmã de Natália, Cármen. Daí resultou a apreensão de oito dos seus livros, conforme nos relata num inédito:
​«Pedem-me que diga algo sobre as devastações que a censura fez na minha obra. Creio que ela foi particularmente animadora dos saques censórios. Porquê esta eleição? Porque não confinei os meus ataques ao circuito meramente político do fascismo. A evolução do meu espírito foi-me colocando cada vez mais no campo da recusa global. Neste alinhamento revolucionário empreendi desmistificações das quais, a que mais cara me saiu foi afligir o puritanismo que serve de guardião a todas as ditaduras. Em dada altura pareceu-me eminentemente oportuno, lançar no charco do despotismo salazarista, a pedrada de um estudo dedicado ao erotismo e sátira fescenina, ilustrado antologicamente. O resultado foi uma cómica condenação que do alto do Plenário pretendia avassalar-me, mas que me proporcionou jocosa oportunidade de dar razão a Nietzsche quando ele compara os juízes com os camelos. Como vêem não tenho vocação para vítima (…). Nesta indisposição, das baionetas que sempre apontarei ao peito inchado dos poderes, oito me foram confiscadas por mais insurrectas. Enumero-as: Dimensão Encontrada (poesia); Comunicação (poesia); Cântico do País Emerso (poesia); O Vinho e a lira (poesia); Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (estudo e antologia); O Homúnculo (teatro); O Encoberto (teatro); A Pécora (teatro)[1].»
​António Sérgio chegara a Lisboa em 1907, com uma matriz humana e libertária bem enraizada na infância que vivera no Congo e que lhe ditava a Educação como desígnio a implementar no seu país, onde o analfabetismo ultrapassava os 70%: em África,  fora livre, vira as crianças crescerem sem qualquer dignidade que lhes devolvesse a saúde e a educação elementares, direito universal inalienável e aspectos que ficariam por si registados na autobiografia que escreveu, em 1915, no Livre D´Or do Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genève, onde esteve durante três anos, e que, em boa hora, foi dada a conhecer:
​«J’ai passé mon enfance (de troix jusqu´après de dix ans) en Afrique occidentale où mon père était gouverneur du Congo portugais. Maladies graves du pays. Pas d’autres enfants avec qui jouer; pas d’éducation systématique (…) Traité sous un régime très libre. (HAMELINE, NÓVOA, 1996: 141-177)»
​António Sérgio tinha tudo para ser o mestre de Natália Correia. Lera a filosofia de Kant, Descartes, Espinosa, Proudhon, entre outros; era um anteriano confesso; deambulara pela Europa, bebendo as novas correntes estéticas e de pensamento, desempenhara um papel preponderante na Renascença, na Águia e na Seara Nova, esta última até 1958:
​«Esses periódicos constituíram um terreno privilegiado de afirmação de António Sérgio enquanto intelectual comprometido com um ideal radicalmente autónomo de cidadania. Um intelectual engagé com um imperativo de consciência desde os primeiros tempos da República – tópico aliás muito debatido na época que lhe foi dado viver, o ‘tempo dos intelectuais» (MATOS, 2022: 18)
Em 1946[2], um ano antes de Natália Correia, Sérgio passa a integrar o MUD – Movimento de Unidade Democrática: Pela mão do mestre, em 1949, apoia a candidatura à Presidência da República do general Norton de Matos e, em 1958, as candidaturas de Arlindo Vicente e de Humberto Delgado. Conforme escrevemos anteriormente, são cerca de 12 anos de uma relação de profunda cumplicidade e de luta direitos universais, vivida na senda do cooperativismo. É esta cumplicidade, assente num ideal romântico e por isso libertário para Portugal, que leva a escritora açoriana a integrar a Cooperativa Fraternidade Operária e a colaborar no Boletim Informativo do Conselho Central das Cooperativas, então dirigido por António Sérgio.
 
Em 1950, Natália Correia   visita os Estados Unidos da América, a fim de contactar Norman Thomas: António Sérgio encarregara-a de contactar o então líder do Partido Socialista norte-americano, com quem mantinha um contacto regular. O objectivo consistia em aferir a possibilidade de trazer para Portugal o modelo de um socialismo libertário. Sobre o encontro no país do Tio Sam, escreve a autora de Descobri que era Europeia, o livro que, a propósito dessa viagem, publicará no ano seguinte:
«Pois bem, nessa figura respeitável, nobremente encanecida por uma luta incansável em prol dos seus ideais, fui dar com um desiludido. (…) Sérgio contava com o prestígio de Norman Thomas para despertar o interesse da opinião pública norte-americana pela causa da nossa resistência ao fascismo. (…). A resposta foi desanimadora: não posso dar-lhe qualquer espécie de colaboração. (…). Para aquele dirigente socialista norte-americano, o operário norte-americano consistia numa (…) massa alienada pela abundância com que o reformismo capitalista o subjugou. Diga ao nosso Sérgio que aqui o socialismo é pregado no deserto. Para mim, acabou-se. Não posso dar-lhe qualquer espécie de colaboração. (…).  E conclui Natália Correia: (…) Foi este triste recado que trouxe ao Mestre. E foi-me penoso observar que ele o digeria dolorosamente. ( ) Uma desilusão a juntar a muitas outras que haveriam de juntar-se a muitas outras, que haveriam de fixar o alheamento final em que ele mergulhou.» (CORREIA, 2018: 61-62).
​Foi o apostolado do filósofo, do ensaísta, do pensador, do cooperativista, «a plenitude da liberdade crítica» (SÉRGIO, 1938: 12) do pensador, «a sensibilidade simultaneamente mística e romântica» (SÉRGIO, 1938: 11), assumida pelo pedagogo, a deliberada incapacidade sergiana de ficar impávido perante a condenação de um povo à miséria e ao analfabetismo, ou Estado ideal da manipulação:
«Anti-demagogo continuo sempre: nada menos demagógico poderá haver aí do que o programa cooperatista. Pouco «político» continuo sempre: nada menos político, com efeito, do que é o programa cooperatista. Respeitador da pessoa continuo sempre: é no respeito da pessoa humana que se funda o programa cooperatista. Amante da liberdade continuo sempre. (…). Anti-dogmático continuo sempre.» (SÉRGIO, 1938: 13)
Agora que estamos prestes a celebrar 50 anos do 25 de Abril, não é possível dispensar o contributo inestimável que é o legado romântico-libertário de Natália Correia e António Sérgio: insubmissos aos dogmas da ditadura do Estado Novo, ousaram erguer a dignidade humana como primeiro e último desígnio do seu país.


[1] CORREIA, Natália (s/d). Pedem-me que diga algo sobre as devastações que a censura fez na minha obra. Texto autobiográfico inédito. Lisboa:ct. D9/ 3017, cx. 75, 5 f. aut. e 3 dact.. Arquivo de Natália Correia, Secção de Reservados, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.

[2] Vede ficha de admissão número 61, caixa 81, Secção de Reservados da Biblioteca Nacional.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
CORREIA, Natália (2018). Entre a Raiz e a Utopia; Escritos sobre António Sérgio e o Cooperativismo. Ângela de Almeida, Int.  e Notas. Lisboa: Ponto de Fuga.
CORREIA, Natália (s/d). Pedem-me que diga algo sobre as devastações que a censura fez na minha obra. Texto autobiográfico inédito. Lisboa: ct. D9/ 3017, cx. 75, 5 f. aut. e 3 dact.. Arquivo de Natália Correia, Secção de Reservados, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada
Hameline, Daniele, Nóvoa, António (1996) «Autobiografia inédita de António Sérgio. Escrita aos 32 anos no Livre d'Or do instituto Jean-Jacques Rousseau (Genève)». Revista Crítica de Estudos Sociais, 29 de Fevereiro: 141-177.
SÉRGIO, António (1938). «Sobre o odioso “eu”». Seara Nova, nº 588, 19 de Novembro de 1938: 11-13.
During the Estado Novo dictatorship, Natália Correia and António Sérgio played a leading role in the main events of resistance and the struggle for freedom and the defence of human rights, in a student-master relationship characterised by immense admiration, by the author of Não Percas a Rosa: “António Sérgio was not an old man when I met him. But from the point of view of tender ages, which was mine, a gentleman who was already in his sixties, was for me an illustrious example of proven knowledge.” (CORREIA, 2018:53)
 
Natália had come to Lisbon with her mother, a teacher, in 1934. They both trailblazed a path of courage and daring, facing PIDE, then created in 1945, which regularly watched and persecuted them, as well as Natália's sister, Carmen. This resulted in the seizure of eight of her books, as she tells us in an unpublished book:
​“I'm asked to say something about the devastation that censorship did to my work. I think it particularly encouraged the censorious looting. Why this choice? Because I did not confine my attacks to the merely political circuit of fascism. The evolution of my spirit placed me more and more in the field of global refusal. In this revolutionary alignment, I undertook demystifications, the one that cost me the most was to curse the puritanism that serves as a guardian to all dictatorships. At one point, it seemed eminently opportune to me to throw into the quagmire of Salazarian despotism, the stone of a study dedicated to eroticism and fescennine satire, illustrated anthologically. The result was a comical condemnation that, from the top of the Plenary, was intended to subdue me, but which gave me the jocular opportunity to agree with Nietzsche when he compares judges to camels. As you see, I have no talent for being a victim (...). With this indisposition, of the bayonets that I will always point at the swollen chest of the powers that be, eight were confiscated from me for being particularly insurgent. I list them: Dimensão Encontrada (poetry); Comunicação (poetry); Cântico do País Emerso (poetry); O Vinho e a lira (poetry); Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (study and anthology); O Homúnculo (theatre); O Encoberto (theatre); A Pécora (theatre)[1].»
​António Sérgio arrived in Lisbon in 1907, with a human and libertarian matrix that was well rooted in the childhood he had lived through in the Congo, which dictated to him that education should be the plan to implement in his country, where illiteracy exceeded 70%: in Africa, he had been free, he had seen children grow up without any dignity that would give them back their health and elementary education, an inalienable universal right, and aspects that he would record in the autobiography he wrote in 1915 in the Livre D'Or of the Jean Jacques Rousseau Institute in Geneva, where he was for three years, and which, in good time, was made known:
“J’ai passé mon enfance (de troix jusqu´après de dix ans) en Afrique occidentale où mon père était gouverneur du Congo portugais. Maladies graves du pays. Pas d’autres enfants avec qui jouer; pas d’éducation systématique (…) Traité sous un régime très libre. (HAMELINE, NÓVOA, 1996: 141-177)”
António Sérgio had everything to be Natália Correia's teacher. He had read the philosophy of Kant, Descartes, Spinoza, Proudhon, among others; he was a self-confessed Anterian [referring to the works of Antero de Quental]; he had wandered around Europe, drinking in the new aesthetic and intellectual currents, had played a leading role in the Renaissance, Águia and Seara Nova, the latter until 1958:
​“These periodicals constituted a privileged ground for the affirmation of António Sérgio as an intellectual committed to a radically autonomous ideal of citizenship. An intellectual engagé with an imperative of conscience since the early days of the Republic – a topic much discussed at the time he lived, the “time of intellectuals” (MATOS, 2022: 18)
In 1946[2], a year before Natália Correia, Sérgio joined the MUD – Movement of Democratic Unity: By the hand of the master, in 1949, he supported the candidacy for the Presidency of the Republic of General Norton de Matos and, in 1958, the candidacies of Arlindo Vicente and Humberto Delgado. As we wrote earlier, these are about 12 years of a relationship of deep complicity and struggle for universal rights, lived out on the path of cooperativism. It is this complicity, based on a romantic and therefore libertarian ideal for Portugal, that leads the Azorean writer to integrate the Cooperativa Fraternidade Operária and to collaborate in the Newsletter of the Central Council of Cooperatives, then directed by António Sérgio.
 
In 1950, Natália Correia visits the United States of America in order to contact Norman Thomas: António Sérgio commissioned her to contact the then leader of the American Socialist Party, with whom he was in regular contact. The objective was to assess the possibility of bringing a libertarian socialism model to Portugal. The author of Descobri que era Europeia, the book about this trip that she would publish the following year, writes the following about the meeting in Uncle Sam's country:
“Well then, in this respectable figure, nobly plucked from a tireless fight for his ideals, I came across a disappointed man. (...) Sérgio was counting on the prestige of Norman Thomas to arouse the interest of American public opinion in the cause of our resistance to fascism. (...). The answer was disheartening: I cannot collaborate in any way. (…). For that North American socialist leader, the North American worker consisted of a (…) mass alienated by the abundance with which capitalist reformism subjugated him. Tell our Sergio that socialism is preached in the desert here. For me, it's over. I cannot collaborate with him in any way. (…).  And Natália Correia concludes: (...) It was this sad message that I brought to the Master. And it was painful for me to observe that he digested it painfully. (...) A disappointment to add to many others that would be added to many more, that would fix the final detachment into which he plunged.” (CORREIA, 2018: 61-62)
It was the apostolate of the philosopher, the essayist, the thinker, the cooperativist, “the fullness of critical freedom” (SÉRGIO, 1938: 12) of the thinker, “the simultaneously mystical and romantic sensibility” (SÉRGIO, 1938: 11), assumed by the pedagogue, the deliberate Sergian inability to remain impassive before the condemnation of a people to misery and illiteracy, or the ideal State of manipulation:
“I will always remain an anti-demagogue: there can be nothing less demagogic there than the cooperatist programme. I will always remain barely “political”: nothing less political, in fact, than the cooperatist programme. I will always be respectful of human beings: the cooperatist programme is based on respect for the human being. I will always remain a Lover of freedom. (…). I will always remain an anti-dogmatist.” (SERGIO, 1938: 13).
​Now that we are about to celebrate the 50th anniversary of the 25th of April, it is not possible to dispense with the invaluable contribution of the romantic-libertarian legacy of Natália Correia and António Sérgio: unsubmissive to the dogmas of the Estado Novo dictatorship, they dared to raise human dignity as the first and last goal of their country.
[1] CORREIA, Natália (n.d.). Pedem-me que diga algo sobre as devastações que a censura fez na minha obra [I'm asked to say something about the devastation that censorship did to my work]. Unpublished autobiographical text. Lisbon: ct. D9/3017, cx. 75, 5 f. aut. and 3 dact. Natália Correia Archive, Reserved Section, Public Library and Regional Archive of Ponta Delgada.

[2] See admission form number 61, box 81, Reserved Section of the National Library.

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BIBLIOGRAPHIC REFERENCES
 
CORREIA, Natalia (2018). Entre a Raiz e a Utopia; Escritos sobre António Sérgio e o Cooperativismo. [Between Root and Utopia; Writings about António Sérgio and Cooperativism]. Angela de Almeida, Int. and Notes. Lisbon: Ponto de Fuga.
CORREIA, Natalia (n.d.). Pedem-me que diga algo sobre as devastações que a censura fez na minha obra [I'm asked to say something about the devastation that censorship did to my work]. Unpublished autobiographical text. Lisbon: ct. D9/3017, cx. 75, 5 f. aut. and 3 dact. Natália Correia Archive, Reserved Section, Public Library and Regional Archive of Ponta Delgada
CORREIA, Natalia (1951). Descobri que era Europeia- Impressões duma Viagem à América [I found out I was European - Impressions of a Trip to America]. Lisbon: Portugália.
Hameline, Daniele, Nóvoa, António (1996) «Autobiografia inédita de António Sérgio. Escrita aos 32 anos no Livre d'Or do instituto Jean-Jacques Rousseau (Genève) [Autobiography unpublished by António Sérgio. Written at the age of 32 at the Livre d'Or of the Institute Jean-Jacques Rousseau].” Revista Crítica de Estudos Sociais [Critical Journal of Social Studies], February 29: 141-177.
SERGIO, António (1938). “Sobre o odioso “eu.” [On the hateful “I.”] Seara Nova, no. 588, November 19, 1938: 11-13.
n.18 // outubro 2022