Rui Namorado
Professor Jubilado da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra Retired Professor of the Faculty of Economics of the University of Coimbra Maria Elisabete Ramos
Professora Auxiliar com Agregação em Direito
a exercer funções docentes na Faculdade de Economia de Coimbra |
RUI NAMORADO
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1. Que factores históricos e sociais contribuíram para o surgimento e consolidação do movimento cooperativo?
Com a acentuação da sua tonalidade capitalista nos países mais desenvolvidos da Europa e da América, que se intensificou no século XIX, a ordem económica foi cada vez mais sendo absorvida por uma lógica de geração do lucro enquanto motor da reprodução alargada do capital. As cooperativas afirmaram-se como um dos aspectos da resistência do movimento operário a essa dinâmica, como uma das suas vertentes associativas mais relevantes, ao lado dos sindicatos e dos partidos políticos operários. Pode dizer-se que através delas o movimento operário assumia uma intervenção empresarial própria, cujo eixo era o de gerar valor de uso, sendo o valor de troca eventualmente gerado instrumental e secundário. As cooperativas procuravam utilizar o capital, mas sem se deixarem instrumentalizar por ele. O movimento cooperativo não se circunscreveu, no entanto, ao movimento operário. Afirmou-se também na actividade agrícola e no espaço rural, bem como numa fase posterior no pequeno comércio e no artesanato, sem esquecer a cooperação de crédito, ligada ou não à economia rural. Compreende-se assim que as cooperativas modernas inscrevam no seu código genético a sua raiz no movimento operário, ainda que não tenham existido apenas no seu seio. Na verdade, o fenómeno associativo com a tonalidade cooperativa que a modernidade consagrou começou a emergir com algum significado no início do Século XIX, em especial em Inglaterra, mas também de algum modo na França e na Alemanha. Nas primeiras quatro décadas desse século, particularmente em Inglaterra, foi forte a natalidade cooperativa, embora acompanhada insalubremente por uma forte mortalidade. Daí resultou uma intensa procura de regras de funcionamento que assegurassem que, na constância dessa natalidade, a mortalidade esmorecia. Foi nesse quadro que surgiu, como episódio marcante que se inscreveu história do cooperativismo, a fundação em 1844 na cidade inglesa de Rochdale, nos arredores de Manchester, de uma Cooperativa de Tecelões, predominantemente congregados pela sua qualidade de consumidores. As regras por que se regeu essa cooperativa ─ a Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale ─ ganharam reconhecimento e notoriedade, transpondo celeremente a fronteira inglesa e afirmando-se, gradual mas seguramente, como espinha dorsal da identidade cooperativa, como matriz essencial do que viriam a ser os princípios cooperativos. 2. Que importância atribui aos princípios cooperativos para a construção da chamada "identidade cooperativa"? Os princípios cooperativos são o cerne da identidade cooperativa que, por sua vez, é uma ressonância do perfil institucional e funcional adoptado pela Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale ao ser fundada em 1844. Neles se radicou o perfil organizativo com base no qual se fixaram as características das entidades constitutivas da Aliança Cooperativa Internacional (ACI) quando foi fundada em 1895. Mas esta visão dos princípios cooperativos só viria a ser textualizada formalmente pela ACI mais tarde, já nos anos 30 século XX; tendo passado depois por dois processos de reexame e reflexão estruturados no âmbito da ACI. O primeiro foi concluído no Congresso de 1966 e o segundo no de 1995 ─ o Congresso do Centenário da ACI, onde se fixou a formulação actualmente em vigor. Mas todas as modificações ocorridas nessas sucessivas reformulações dos princípios cooperativos, ao longo desse século e meio (1844/1995) mantiveram como espinha dorsal a matriz rochdaleana. A revisão consumada no Congresso do Centenário, realizado em Manchester em 1995, envolveu uma reformulação dos princípios, que no entanto foi integrada na explicitação de uma identidade cooperativa que, embora neles enraizada, não deixou de os transcender. Na verdade, à reformulação dos princípios oriundos de Rochdale, acrescentou-se uma explicitação dos valores cooperativos e de uma noção de cooperativa. Nos dois casos, tratou-se de textualizarr formalmente uma atmosfera ideológica e uma noção, no essencial já existentes. Mas o verdadeiro processo de reexame da identidade cooperativa centrou-se nos princípios cooperativos propriamente ditos. Eles passaram a ser formalmente considerados como correspondendo aos pequenos textos em que o seu conjunto se repartia e não apenas às epígrafes que abrem cada um desses textos. Os princípios da “Adesão voluntária e livre”, e da “Gestão democrática pelos membros” mantiveram-se no essencial. Quanto aos da “Autonomia e independência” , da “Educação, formação e informação” ,, e o da “Intercooperação”, embora com alguns ajustamentos não viram alterado o seu conteúdo básico. Os anteriores princípios reguladores do eventual pagamento de juros aos cooperadores, pelos títulos de capital que haviam subscrito, e da distribuição dos excedentes fundiram-se num único que passou a regular toda a “Participação económica dos membros”, a qual continuou a seguir as linhas de orientação tradicionais. Por fim, foi consagrado um novo princípio, o do “Interesse pela comunidade”: “As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentável das suas comunidades, através de políticas aprovadas pelos membros”. A noção de cooperativa considerava-a “uma associação autónoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades económicas, sociais e culturais comuns, através de uma empresa de propriedade comum e democraticamente gerida”. Nos valores cooperativos mencionavam-se para as cooperativas os “de auto-ajuda e responsabilidade própria, democracia, igualdade, equidade e solidariedade”; e, quanto aos membros, a crença “nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelos outros”. 3. Olhando para a realidade portuguesa, que importância teve a Revolução da Abril para o movimento cooperativo? O envolvimento do movimento cooperativo numa atmosfera de suspeição e hostilidade foi uma das marcas características do salazarismo. Nalguns casos, assumiu ostensivamente uma atitude repressiva, noutros instituiu um garrote mais ou menos disfarçado, noutros enveredou por uma instrumentalização autoritária, ora mais melíflua ora mais descarada, que tendia a falseá-lo esterilizando-o. Por isso, a Revolução de Abril foi, também para o movimento cooperativo, uma imensa respiração de liberdade, uma libertação. Daí ter havido logo um impulso célere e decidido, no sentido de reinserir as cooperativas portuguesas no movimento cooperativo mundial, com óbvio e ostensivo respeito pela tradição histórica concreta do cooperativismo português. Foi nessa medida que se procurou plasmar explicitamente como valor constitucional a fidelidade à tradição cooperativa dominante à escala mundial, consubstanciada na visão da ACI. Isso, aliás, ficou bem patente quando foi consagrada como matriz irremovível da identidade cooperativa em Portugal a obediência aos princípios cooperativos, assumidos pela ACI à escala mundial. Essa dinâmica institucional harmonizou-se plenamente com o forte impulso, então vivido por iniciativas cooperativas nos movimentos sociais, que muitas vezes foi mais forte do que a sua institucionalização jurídico-política, ainda que falha de perenidade. 4. A Revolução de Abril desencadeou um processo evolutivo que teve um dos seus momentos estruturantes na aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976. Em matéria de organização económica, consagra-se constitucionalmente o "setor cooperativo" e em 1989 o "setor cooperativo e social" que se distingue quer do setor público quer do setor privado. Onde radicam as especificidades deste "setor cooperativo e social"? O sector cooperativo e social só na revisão constitucional de 1997 atingiu a sua conformação actual. Foi então que passou a abranger também um subsector solidário e que o subsector cooperativo passou a abranger as “régies” cooperativas (ou cooperativas de interesse público). É, portanto, um sector de várias faces. No seu todo, não pertence à esfera pública, não sendo assim uma ressonância directa ou indirecta do Estado, seja ele central, regional ou local. Distingue-se também do sector das empresas privadas com fim lucrativo, o qual tem como característica motriz determinante de última instância, a de ter como razão de ser a procura de lucro, a qual se inscreve assim irremovívelmente na sua identidade. Assim, o sector cooperativo e social tem a especificidade de visar, em primeira linha, a produção de bens e serviços em função da respectiva utilidade social e não dos lucros que possa gerar a sua transacção. Congrega pois um tipo de estruturas que usam o capital como instrumento, não estando por isso ao seu serviço com a vocação dominante de o reproduzirem. Dá centralidade ao valor de uso como potencial decisivo, colocando num plano secundário o seu valor de troca na arena económica. Num segundo plano, o sector cooperativo e social é um feixe de características especiais radicadas nos seus três subsectores. O subsector cooperativo tem como força motriz das entidades que o integram a cooperatividade, ou seja a valorização estrutural da cooperação entre os seus membros. O subsector social propriamente dito centra-se na outorga da posse útil dos bens de produção geridos pelas comunidades locais num caso, pelos colectivos de trabalhadores, noutro, a uma e a outros. O subsector solidário tem como eixo a solidariedade social, no âmbito da qual é destacado o mutualismo. Há aliás que sublinhar que desde a revisão constitucional de 1997 o sector cooperativo e social coincide quase por completo com o que a doutrina e as leis comuns consideram ser a economia social. E tentando compreender o processo de afirmação da economia social em Portugal encaremo-lo como um desenvolvimento inserido num processo social mais vasto, desencadeado pelo 25 de Abril de 1974. Para isso, há que valorizar as raízes da economia social, mesmo quando ainda se não assumiam como tais, nem se reconheciam como conjunto único com uma lógica e um horizonte comuns. De facto, a evolução da CRP na gradual afirmação do seu sector cooperativo e social e a economia social como dinâmica sociopolítica têm vivido uma apreciável comunhão de valores, partilhando com naturalidade desígnios e horizontes. E mesmo a aparente diferença de nomenclaturas, que podia entrepor-se entre ambos, não apaga a naturalidade de uma partilha substancial de desígnios e horizontes. 5. Em 1980, foi publicado o primeiro Código Cooperativo Português que autonomiza formalmente as cooperativas das sociedades. Opção legislativa que se manteve até hoje. Que forças políticas apoiaram esta mudança legislativa? Quando o Código Cooperativo iniciou a sua vigência em 1980, a autonomia jurídica estrutural das cooperativas já estava constitucionalmente consagrada, desde a entrada em vigor da Constituição de Abril em 1976. Desse modo, havia já um suporte constitucional potenciador de um amplo consenso, quanto à autonomia do direito cooperativo comum. Alguns trabalhos preparatórios do novo Código Cooperativo haviam decorrido sob a égide do INSCOOP, já antes do Governo da Aliança Democrática, liderado por Francisco de Sá-Carneiro que o fez publicar em 1980. As divergências então surgidas quanto ao Código na arena política foram mais a propósito de aspectos parcelares específicos do que quanto a questões estruturais decisivas como era o caso da autonomia na regulação jurídica das cooperativas relativamente ao universo societário. Aliás, no Preâmbulo do Código menciona-se a aspiração histórica do movimento cooperativo nesse sentido e o pioneirismo da Lei Cooperativa de 1867 de tão curta vigência. Genericamente, podemos dizer que a especificidade cooperativa, ancorada na simbiose das suas tonalidades associativa e empresarial, vertebrou a sua autonomia jurídica, afastando quer a sombra mimética das sociedades comerciais, quer a simples diluição num universo associativo holístico. 6. Na sua opinião, e tendo em conta a sua experiência como Professor da Faculdade de Economia de Coimbra e responsável pelo Centro de Estudos Cooperativos, que contributo pode a academia dar ao movimento cooperativo? O primeiro contributo que a academia pode dar ao movimento cooperativo é estudá-lo, para assim poder colaborar com plena utilidade na formação dos seus dirigentes e dos seus quadros. Para compreender o movimento cooperativo na sua ressonância global, valorizando a sua natureza, a sua profundidade histórica e o seu horizonte, é hoje indispensável encará-lo como parte da economia social. Para esta abordagem panorâmica há que o encarar como um objecto de estudo enraizado no passado mas com ambição de futuro. E isso implica uma interdisciplinaridade densa no campo das ciências sociais e humanas, doutrinária e teoricamente fecunda. Compreende-se assim a necessidade de instituir com durabilidade uma presença própria do cooperativismo e da economia social, quer ao nível da licenciatura, quer do mestrado, quer de outos tipos de estudos pós-graduados. Com celeridade, deve procurar atingir-se nesta área o patamar mais exigente, o do doutoramento, ainda que sopesando bem, naturalmente, o seu grau de especificidade desejável e as suas conexões disciplinares mais adequadas. Isto, claro, sem esquecer uma criteriosa procura de parcerias internacionais com outras Universidades, sejam elas europeias ou brasileiras. Uma característica positiva importante, deste tipo de centros de estudos nesta área temática, deve ser uma ligação íntima com as respectivas instituições da sociedade civil, correspondam elas a movimentos sociais ou a entidades públicas. No caso português, dá-se o maior relevo à CASES (Cooperativa António Sérgio para a Economia Social), bem como também com alguma relevância, ao CNES (Conselho Nacional para a Economia Social) e a CPES (Confederação Portuguesa de Economia Social). Num registo paralelo será também natural uma estreita colaboração com o movimento cooperativo e as outras estruturas organizadas da economia social. Pode assim justificar-se a instituição de uma instância de formação e qualificação de quadros em cursos breves. Por último, parece-me importante que cada Centro de Estudos de Economia Social disponha de uma boa biblioteca internacional especializada, envolvendo as principais línguas entre nós mais difundidas. 7. Outro importante marco é a publicação em 2013 da Lei de Bases da Economia Social? Como entende a economia social e que balanço faz da importância da Lei de Bases nestes dez anos de vigência? Entendo a economia social como fruto de um feixe de movimentos sociais sedimentados em organizações animadas cooperativamente por uma visão humanista e solidária. É de algum modo uma esperança em movimento. Assume o combate às sequelas das desigualdades sociais, robustecendo-se quando não renuncia à extirpação das suas raízes. Procura assim responder ao sofrimento humano induzido pela desigualdade social, apostando em contê-lo e mitigá-lo. Exprime-se através de acções colectivas organizadas que, pelo facto de o serem, lhe transmitem durabilidade e reforçam o seu enraizamento social. Mas para a podermos compreender com rigor, teremos de, em primeiro lugar, identificar com clareza todos os tipos de organizações que a integram, de modo a projectá-los em conjunto sem distorções na ordem jurídica, e fazendo-o assim adquirir estabilidade, perenidade e nitidez. Em segundo lugar, a esse território juridicamente definido deve acrescer um espaço aberto percorrido pelas práticas socioeconómicas integráveis na economia social, uma periferia em interacção permanente com o núcleo central. No caso português, saliente-se que, nos termos da lei, cabem na economia social as entidades que assumem a forma cooperativa, as que são fundações e uma parte das que assumem a forma de associação. Também são por ela abrangidas, quer as entidades de natureza comunitária, quer as empresas que funcionem em autogestão. A entrada em vigor de uma Lei de Bases da Economia Social (LBES) começou por dividir a direita e a esquerda na Assembleia da República. Na verdade, ainda durante o segundo governo de José Sócrates (em 2011), quando o PS já não dispunha de maioria absoluta, sendo, no entanto, a direita minoritária, a Assembleia da República rejeitou com os votos de toda a esquerda a proposta de uma LBES apresentada pelo PSD. Essa mesma proposta foi apresentada de novo na legislatura seguinte, sob o governo de Passos Coelho, quando a direita dispunha já de maioria parlamentar. No essencial, o projecto em causa começou por ser um eco óbvio da Lei de Bases Espanhola, publicada em Março de 2011, mas cujos trabalhos preparatórios eram há muito conhecidos. No entanto, o aparente unilateralismo impositivo que poderia recear-se, não se confirmou na discussão na especialidade, onde a maioria de direita se mostrou disponível, para uma discussão aberta e geradora de consensos em torno dos caminhos que se tinham pela frente. Mas esta abertura foi ainda mais significativa e fecunda, por se ter conjugado com o envolvimento formal no processo de um leque de interlocutores relevantes da sociedade civil, fossem eles instituições ou personalidades. E assim foi possível melhorar muito o texto em debate e consensualizar propostas. Naturalmente, tornou-se assim muito mais fácil que a versão final da LBES tivesse obtido uma aprovação parlamentar unânime. E assim se criou na ordem jurídica uma articulação estruturante que ajuda a drenar para o espaço legislativo comum a valorização das experiências da economia social presentes na CRP, facilitando-se a sua ancoragem institucional no contexto europeu. Robusteceu-se assim a sua legitimidade jurídico-política, solidificando-se e potenciando-se a sua irradiação, e dando-se consistência ao seu envolvimento numa metamorfose social mais ampla. 8. A Lei de Bases da Economia Social nada diz sobre as empresas sociais que têm merecido muita atenção da União Europeia e em alguns ordenamentos jurídicos têm sido objeto de legislação específica. Que factores explicam o interesse que as empresas sociais suscitam atualmente? O interesse suscitado por este tipo de empresas tem motivações múltiplas e nalguns casos entre si contraditórias. Tudo se complicando, aliás, no quadro da União Europeia, com a heterogeneidade do seu acolhimento pelas ordens jurídicas dos vários países, agravada pela fluidez da própria noção de empresa no plano do direito. Não se pode aliás divorciar esse interesse do crescente relevo atribuído à economia social como problemática dinâmica e variegada. Na verdade, dada a riqueza, a especificidade e a relevância político-jurídica da abordagem da economia social no caso português, não é prudente deixar de se sopesar no seu âmbito a própria questão das empresas sociais, situando nesse contexto o seu desenho conceptual e mesmo a sua natureza. Valorize-se, desde logo, o modo como a nossa Constituição incide nalgumas das constelações da economia social, tendo em conta que essa incidência influiu muito no modo como essas constelações vieram a integrar a galáxia da economia social. Desde a primeira versão da CRP (1976) que grande parte das componentes do que é hoje “economia social” em Portugal era destinatária explícita de um conjunto relevante de mensagens normativas. Em sucessivos processos de revisão constitucional, essa perspetiva foi ainda mais amadurecida. E assim se foi gerando uma base constitucional sólida para a ancoragem da economia social na ordem jurídica portuguesa. Lembremos, como exemplos mais relevantes, as normas constitucionais que têm a ver com as cooperativas, com as IPSS, com as comunidades locais, com o mutualismo e com o associativismo. Essas várias abordagens normativas robustecem e exprimem, em larga medida, o importante lugar que a economia social ocupa no projeto constitucional que se consubstancia na nossa República. Esta sinergia, entre a matriz da CRP e a lógica conformadora da economia social, tem também uma expressão importante na centralidade que a democracia tem em ambos os casos. A CRP assume como horizonte uma democracia política, económica e social. A economia social é uma simbiose democrática do económico e do social. Ambas se inscrevem num processo emancipatório impregnado por uma cultura democrática. Paralelamente, a CRP acolhe uma visão pluralista da economia com um sector público, um sector privado lucrativo e um sector cooperativo e social, animado por um protagonismo direto dos cidadãos que não têm o lucro como objetivo na sua atividade colectiva organizada. E identifica com clareza esse pluralismo como uma das suas características estruturantes. Naturalmente, que o corolário desse pluralismo é a diversificação das formas organizativas que dão aos vários sectores vidas distintas. E se considerarmos que todas essas formas organizativas são suficientemente estruturadas e perenes para poderem ser encaradas como empresas, será natural que projetemos o pluralismo económico da CRP num correspondente pluralismo de formas jurídico-empresariais, num pluralismo empresarial. Teremos assim empresas privadas, empresas públicas e empresas cooperativas e sociais. Este pluralismo empresarial foi aliás expressamente assumido nos estudos jurídicos como decorrência natural da Constituição de Abril. De início, suscitou a emergência de uma categoria de empresas que transcendia a dicotomia sector público/sector privado a qual tinha no essencial uma tonalidade cooperativa. Depois, essa amplitude aumentou. E, hoje, ao sector cooperativo e social, e por extensão à economia social, correspondem as empresas sociais, categoria que partilha o universo empresarial com as empresas privadas e com as empresas públicas. Portanto, sendo as empresas sociais as expressões organizativas da economia social, abrangem necessariamente as cooperativas. E assim, pode dizer-se que o protagonismo da economia social é partilhado por dois tipos de empresas sociais, as cooperativas e as sociais propriamente ditas De tudo isto, resulta que é apenas fruto de um preconceito ideológico considerarem-se como empresas apenas as empresas privadas lucrativas. E muito menos considerar que a sua forma jurídica típica ─ a sociedade comercial ─ está ungida, em abstrato e em si própria, de uma vocação universal que a habilita a ser a melhor solução jurídica para o protagonismo coletivo em qualquer tipo de atividade económica. Pelo contrário, em consonância com a visão que a CRP projeta, o mais provável é que fora das atividades económicas com lógica lucrativa a sociedade comercial não seja a forma jurídica mais adequada. Ou pelo menos, não o seja genérica e abstratamente, embora o possa ser em casos muito excecionais, em função de particularidades pouco frequentes. Por tudo isto, à luz do panorama jurídico-constitucional português, o mais defensável parece ser que são empresas sociais as empresas abrangidas pela economia social e só essas. Outros caminhos, para além de poderem suscitar um risco de fragmentação da economia social ou de algumas das suas constelações, de poderem traduzir-se num mero expediente para canalizar para empresas capitalistas os fundos públicos destinados à economia social, de poderem ser um impulso de descaracterização e de banalização da economia social, são verdadeiros corpos estranhos no contexto jurídico português; e protagonizam estratégias de combate à economia social pouco éticas, ilegítimas e, se virmos bem, talvez mesmo ilegais. Assim, parece mais prudente e mais fecundo, considerar como hipótese de partida, que, no caso português, são empresas sociais as entidades que integram a economia social e só essas. Se houver iniciativas, nem públicas nem privadas, que não caibam neste espaço tal como existe no presente, a via aparentemente mais fecunda será a instituição de uma figura jurídica nova, susceptível de gerar um correspondente espaço jurídico-normativo que consubstancie a sua natureza, as suas características e os seus objectivos. Claro, que percorrer essa via só fará sentido, se a iniciativa em causa não puder, à luz da ordem jurídica portuguesa, ser encarado como pertencendo à economia social ou ao sector cooperativo e social consagrado na Constituição. As empresas sociais não foram objecto de uma consideração jurídica autónoma na LBES (Lei de Bases da Economia Social), mas essa hipótese foi ponderada no decurso desse processo legislativo, concluído em 2013, acabando por ser recusada. Há quem encare isso negativamente, por entender que foi assim perdida uma oportunidade de criar um ambiente ainda mais favorável para as empresas socais. No entanto, a favor desse ponto de vista, não me parece terem sido aduzidos argumentos convincentes. Na verdade, é dominante em Portugal a perspectiva que vê nas empresas sociais a materialização da economia social. Essa posição, como vimos, harmoniza-se com o trajecto percorrido pela regulação jurídico-política desde a Revolução de Abril, bem como com a importância relativa e com o perfil assumidos entre nós pelas entidades que se possam considerar como tais. 9. No ano em que se celebram os 50 anos da Revolução de Abril, quais são as conquistas consolidadas do cooperativismo e quais os desafios que este movimento é chamado a responder? Comecemos pelo essencial. Sublinhemos como conquista estratégica do cooperativismo, o seu protagonismo na resistência às sequelas predatórias e aos bloqueios de horizonte inerentes às sociedades de tipo capitalista. Uma resistência que além de, em si própria, consubstanciar uma conquista tem também na sua continuidade, talvez o maior desafio do cooperativismo. Mas o seu envolvimento activo na metamorfose social conducente ao pós-capitalismo tende cada vez mais a inscrever na sua própria natureza uma imbricação profunda na economia social. Trata-se assim de participar numa luta de largo espectro contra o sofrimento humano, rumo a um horizonte emancipatório, encarado como ressonância democrática de última instância da liberdade e da igualdade. E assim, no fundo, talvez a consolidação mais efectiva das conquistas do cooperativismo seja a força dos movimentos sociais que o protagonizam. O mesmo se pode dizer, aliás, quanto à economia social no seu todo. Numa perspectiva mais limitada, uma conquista importante é o lugar que as cooperativas ocupam na CRP. Em primeiro lugar, o seu lugar específico como subsector autónomo; em segundo lugar, a sua integração, implícita mas clara, numa economia social reconhecida pelo projecto constitucional como relevante dinâmica diferenciada do desenvolvimento social. O fomento cooperativo, como leque de políticas públicas, deve pois projectar-se no futuro valorizando dois planos: a pertença das cooperativas à economia social e a sua dinâmica autónoma como uma das suas constelações. Ou seja, encarar o movimento cooperativo como constelação da economia social, fazendo do seu empoderamento dento da sua própria especificidade o modo de se afirmar como uma das constelações da galáxia da economia social. Há portanto que inscrever no horizonte a autonomia do cooperativismo como modo de ser da sua pertença à economia social. Esse é um desafio cuja robustez é em si uma conquista. Um desafio também importante, quer em si quer no âmbito da economia social, é o de travar qualquer isomorfismo empresarial radicado na proeminência absoluta do modelo societário inerente às empresas privadas lucrativas, quer como paradigma absorvente, quer como modelo único. Quer no estrito plano cooperativo, quer no quadro da economia social, há também que dar centralidade no seu horizonte, ao envolvimento no processo instituinte de um Estado de Transformação Social; e fazê-lo privilegiando como contexto o desenvolvimento local. Mais do que desafio é um imperativo ético a assunção, como modo de ser das suas entidades e dos seus membros, de um activismo cívico humanisticamente qualificante, dando especial relevo ao seu envolvimento no combate às sequelas das alterações climáticas. Do mesmo modo, sem esquecer como sinal estratégico o imperativo da dignificação do trabalho em geral é um desígnio relevante dar nova relevância aos direitos dos consumidores, no quadro duma atenção permanente e de um reexame cuidadoso do imperativo de uma nova frugalidade, uma nova filosofia do consumo, no quadro da problemática do pós-crescimento. |
March
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