COOPERATIVAS DE ONTEM, HOJE E AMANHÃ:
Reflexões Avulsas de um Cooperativista Convicto Rogério Cação Presidente da Direção da Confecoop . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ser cooperativista, mais do que uma simples decisão associada a uma necessidade concreta, é uma opção de cidadania. Na realidade, uma cooperativa é a projeção dos valores mais elevados de uma sociedade, como o são, a igualdade, a democracia ou a solidariedade. Reconheço que para muitos, porventura com um pensamento enviesado por histórias mal contadas sobre o papel das cooperativas em determinados momentos da história recente, possa não ser fácil entender a importância deste modelo de organização económica e social. Para mim não. Sou de uma terra, Peniche, onde as cooperativas têm uma história incontornável, que vai desde o papel resistente da cooperativa cultural HUMUS, que proporcionou tertúlias com gente grande como Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Mário Viegas, até ao histórico movimento cooperativo dos pescadores que, por razões que não vêm agora ao caso, acabou infelizmente por quase desaparecer. Eu próprio costumo falar do meu próprio percurso cooperativo, talvez um pouco inconsequente porque determinado por razões de contexto e circunstância, mas ainda assim relevante. Desde miúdo que ia comprar as postas de bacalhau demolhado ou o atum de barrica a duas lojas que na sua génese eram cooperativas: a Flor de Maio e A Social. Mais tarde estive ligado a um projeto de criação de um cineclube sob a forma cooperativa. Comprei uma habitação numa cooperativa e acabei por fazer parte substancial do meu percurso profissional ligado às cooperativas de solidariedade social e concretamente à Fenacerci e à Cercipeniche. Percebe-se por isso melhor o orgulho e paixão com que abraço esta causa.
Nestes dias, em fomos e somos confrontados com desafios imensos, as cooperativas souberam afirmar o modelo cooperativo como uma alternativa económica e social de sucesso aos modelos capitalistas, assumindo propostas inovadoras e afirmando uma resiliência notável nos momentos mais difíceis da crise instalada pela COVID 19. As cooperativas de solidariedade social, por exemplo, mobilizadas e organizadas em torno da Fenacerci e da Confecoop, foram um exemplo de empenho e dedicação, superando dificuldades e assumindo uma postura responsável e construtiva. E porque na história do cooperativismo há muitos exemplos de dedicação e coragem, talvez seja importante revisitar a história, não para nos quedarmos embevecidos com um tempo que já passou, mas para nos inspirarmos ainda mais na coragem e na fibra que faz parte do ADN desta grande família a que pertencemos. De fato, vai já longe, no tempo mas nem por isso no significado, o dia 21 de Dezembro de 1844, quando um grupo de tecelões de Rochdale, uma pequena cidade na Região de Manchester, resolveu tomar em mãos o desafio de enfrentar os problemas decorrentes do advento esperado do período áureo da revolução industrial. Nesses tempos idos, vinte e oito operários têxteis lançaram a semente de uma ideia cooperativa de associação de esforços que viria a germinar como um novo entendimento de participação económica e social: o cooperativismo. Nunca como nesses tempos já distantes se tornou tão claro o sentido de um caminho alternativo à economia do capital, que passava por uma visão solidária construída tendo por referência o valor intrínseco e centralizador da pessoa. Mais ou menos pela mesma altura cá pelos nossos lados, era criada a Caixa Económica de Lisboa que muitos consideram a primeira iniciativa de caráter cooperativo no nosso país. E vale a pena retermo-nos nalguns momentos da história O Congresso Cooperativo e o Congresso das Cooperativas do Norte, realizados em 1894 e 1898, são hoje tidos como momentos de diferenciação cooperativa relativamente ao resto do movimento associativo e tentativas de criação de um espírito de coesão e identidade. A Primeira República, por razões historicamente compreensíveis, acolheu de braços abertos o cooperativismo, quintuplicando, em dezasseis anos, o número de cooperativas existentes, com particular enfoque para as cooperativas de consumo. Com o Estado Novo, e particularmente a partir da segunda guerra mundial, as cooperativas começam a evidenciar-se como uma alternativa económica, construída em bases sólidas de liberdade e democracia. A edição do Boletim Cooperativo em 1851, a realização da Reunião Magna das Cooperativas e sobretudo a solidez e aceitação das ideias de António Sérgio, fizeram tremer Salazar que se viu obrigado a elaborar leis que travassem a crescente autonomia e força do movimento cooperativo. Com Abril, e com a liberdade que a revolução nos devolveu, as cooperativas ganharam novo espaço, constitucionalmente consagrado e, pelo menos na letra do discurso, sucessivamente assumidas como determinantes pelos poderes políticos que alternadamente nos foram governando. E das cerca de mil cooperativas que existiam em 1974, a realidade hoje mostra-nos um número que se multiplicou ao longo dos anos, para se situar hoje nas 2343 cooperativas, responsáveis por mais de 24 400 empregos diretos e 604 milhões de euros de valor acrescentado bruto. Mas será que estamos satisfeitos com este crescimento? Não, porque ainda são muitos os desafios por concretizar. Em 2004, o II Congresso das Cooperativas Portuguesas delineou um conjunto de orientações que todos conhecemos. Nelas se defendia, por exemplo, o incremento da formação educação e educação ao longo da vida como estratégia de mudança, a criação de um Fundo Nacional Cooperativo como suporte ao fomento do sector, o reforço da intercooperação, a inclusão de medidas de incremento e dinamização das cooperativas nos novos quadros comunitário, entre outras orientações. A questão que nos devemos colocar é o que é que destas coisas foi efetivamente concretizada e, perante a resposta óbvia, percebermos onde é que estamos a falhar. É por isso que não podemos estar satisfeitos com aquilo que tem sido a evolução do cooperativismo em Portugal, não pelo muito que foi feito pelas cooperativas nos últimos anos, mas por tudo aquilo, que é igualmente muito, que ainda está por fazer. Durante muito tempo, éramos quase sempre os mesmos a discutir as mesmas coisas. Hoje, e sobretudo com uma aposta clara de alguns setores académicos no aprofundamento da via cooperativa, começa a aparecer gente nova e com vontade de inovar. Ainda assim, se queremos apostar a sério no crescimento do setor cooperativo, temos que introduzir novas estratégias de sensibilização e informação, que levem as ideias cooperativas até aos primeiros ciclos escolares, que deem à opinião pública uma ideia correta do significado da intervenção cooperativa e valorizem a sua intervenção, sublinhando aquela que deve ser a regra básica de qualquer cooperativa: servir com eficácia e proximidade e com transparência e democraticidade. Hoje, o cooperativismo tem que ser pensado e assumido num plano mais vasto, isto é, como parte dessa realidade a que convencionamos chamar economia social, onde partilhamos o espaço de reflexão e construção com outras famílias, como o são as mutualidades, as misericórdias, as fundações, as ipss ou as associações. As cooperativas estão de corpo e alma neste grande projeto coletivo onde querem afirmar a sua identidade própria e por isso abraçaram desde logo a criação da Confederação Portuguesa da Economia Social. Mas ainda há muito caminho para andar, até que a Economia Social se faça valer como um todo. Como diria Rui Namorado, o cooperativismo continua a ser uma Constelação de esperança. E voltando à minha terra, eu acrescentaria, um Oceano de oportunidades. Fala-se hoje muito, por exemplo, da globalização e dos efeitos nefastos que tem na destruição de identidades culturais e na promoção da exclusão económica e social. Mas por muito que alguns o contestem, o processo de globalização das economias também é, à partida, gerador de riqueza, e, independentemente disso, é uma inevitabilidade que temos que enfrentar, designadamente tendo presente o lado negativo do processo, isto é, a injustiça e exclusão que promove, na medida em que é apelativo de respostas em larga escala que, inexoravelmente, vão literalmente engolindo estruturas económicas de pequena dimensão, deixando sem resposta milhares e milhares de pessoas, um pouco por todo o mundo. Ao fenómeno da globalização está associado um novo fenómeno bem mais recente e, porventura, mais perverso, o da deslocalização, que faz com que empresas que mobilizam grandes volumes de mão-de-obra se deslocalizem ao sabor de lucros maiores e dos apoios dos espaços económicos internacionais, fomentando o desemprego e, por via deste, a pioria da qualidade de vida e o aumento das probabilidades de exclusão social. A estes problemas, têm alguns Estados respondido, entre outras medidas, com o reforço de políticas de incremento do sector cooperativo, visando através de processos solidários, encontrar soluções sustentáveis, credíveis e alternativas a outros modelos de organização económica. Infelizmente, nem sempre os Estados compreendem, num sentido prático, a real importância económica e social deste sector da economia e, talvez por isso, tardam a ser consolidadas propostas concretas que ampliem a dimensão e impacto económico das respostas cooperativas, na real medida da importância do papel que desempenham para o País e para as Pessoas. Deixo também uma nota esperança relativamente à revisão do Estatuto Fiscal da Economia Social, que esperamos venha a consagrar a diferenciação positiva que as organizações que integram este setor da economia merecem. Num tempo de desafios, as cooperativas têm que saber transformá-los em oportunidades. O futuro passa também por ter cada vez mais gente a perceber que o pensamento cooperativo é promotor de igualdade, de solidariedade, de justiça social e de progresso e desenvolvimento. É fundamental levar esta mensagem às escolas, para que as novas gerações cidadãs saibam assumir o cooperativismo como uma opção de modernidade. E se o fizerem, não tenho dúvidas que seremos um país melhor e com gente mais feliz. |